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Percy Jackson e a Quadriga Roubada

.. sábado, 30 de março de 2013

Percy Jackson e a Quadriga Roubada


Eu estava no quinto tempo, na aula de ciências, quando ouvi sons vindos de fora. SCRAUC! AU! SCRECH!
Era como se alguém estivesse sendo atacado por uma galinha possuída. E, acredite, essa é uma situação que já vivi. Ninguém mais pareceu notar o tumulto. Estávamos no laboratório, e todo mundo estava conversando, então, não foi difícil olhar pela janela enquanto fingia que lavava meu béquer.
Como eu suspeitava, havia uma garota no beco empunhando uma espada. Ela era alta e musculosa como uma jogadora de basquete, tinha cabelos castanhos oleosos e usava jeans, coturnos e jaqueta de brim. Estava golpeando um bando de pássaros pretos do tamanho de corvos. Havia penas presas a suas roupas em vários lugares. Um corte acima de seu olho esquerdo sangrava.
Enquanto eu a observava, um dos pássaros lançou uma pena como se fosse uma flecha, que se alojou no ombro dela. Ela praguejou e tentou acertar o animal, mas ele voou para longe. Infelizmente, reconheci a garota. Era Clarisse, minha antiga inimiga no acampamento para semideuses. Ela costumava passar o ano inteiro no Acampamento Meio-Sangue. Eu não tinha ideia do que Clarisse fazia no Upper East Side no meio de um dia de aula, mas, obviamente, ela estava com problemas. E não ia aguentar por muito mais tempo. Fiz a única coisa que podia.
— Sra. White — chamei — posso ir ao banheiro? Acho que vou vomitar.
Sabe quando os professores ensinam que a palavra mágica é por favor? Isso não é verdade. A palavra mágica é vomitar. Ela tira você da sala de aula mais rápido do que qualquer outra coisa.
— Vá! — respondeu a sra. White.
Corri para a porta, tirando os óculos de proteção, as luvas e o avental do laboratório. Então saquei minha melhor arma: uma caneta esferográfica chamada Contracorrente. Ninguém me parou nos corredores. Saí pelo ginásio. Cheguei ao beco a tempo de ver Clarisse acertar um pássaro demoníaco com a lateral da espada como numa rebatida de beisebol. O pássaro guinchou e voou para longe em espiral, batendo na parede de tijolos e escorregando para dentro de uma lixeira. Mesmo assim, ainda havia uma dúzia deles em volta dela.
— Clarisse! — gritei.
Ela me lançou um olhar furioso, descrente.
— Percy? O que você está fazendo...
Ela foi interrompida por uma saraivada de penas que zuniram sobre sua cabeça e espetaram-se na parede.
— Essa é a minha escola.
— Que sorte a minha — Clarisse resmungou, mas estava muito ocupada para reclamar mais.
Destampei minha caneta, que se tornou uma espada de bronze de um metro de comprimento, e entrei na batalha golpeando os pássaros e desviando as flechas com a lâmina. Juntos, Clarisse e eu atacamos e atingimos os pássaros até que todos fossem reduzidos a pilhas de penas no chão.
Nós dois respirávamos com dificuldade. Eu tinha alguns arranhões, mais nada, além disso. Arranquei uma pena do meu braço. Ela não tinha me perfurado muito. Se não fosse venenosa, eu ficaria bem. Tirei um saquinho de ambrosia do bolso da jaqueta, onde sempre o mantinha para emergências, parti um pedaço ao meio e ofereci um pouco a Clarisse.
— Não preciso da sua ajuda — murmurou ela, mas pegou a ambrosia mesmo assim.
Engolimos alguns pedaços, mas não muitos, já que a comida dos deuses pode queimar até as cinzas se ingerida em excesso. Acho que é por isso que não há muitos deuses gordos. De qualquer forma, em poucos segundos nossos cortes e arranhões desapareceram. Clarisse colocou sua espada na bainha e bateu a sujeira da jaqueta.
— Então... a gente se vê.
— Espere aí! — retruquei. — Você não pode ir embora assim.
— Claro que posso.
— O que está acontecendo? O que está fazendo fora do acampamento? Por que aqueles pássaros estavam perseguindo você?
Clarisse me empurrou, ou tentou me empurrar. Eu estava bastante acostumado com seus truques, então apenas dei um passo para o lado e deixei que ela passasse direto por mim.
— Vamos lá — insisti. — Você quase foi morta na minha escola. Isso agora virou assunto meu.
— Não virou, não!
— Deixe eu ajudar você.
Ela deu um breve suspiro. Senti que realmente queria me bater. Mas, ao mesmo tempo, havia desespero em seus olhos, como se ela estivesse com sérios problemas.
— São meus irmãos — começou ela. — Eles estão aprontando comigo.
— Ah — respondi, sem muita surpresa.
Clarisse tinha muitos irmãos no Acampamento Meio-Sangue. Todos implicavam uns com os outros. Acho que isso era esperado, já que são filhos e filhas do deus da guerra, Ares.
— Que irmãos? Sherman? Mark?
— Não — respondeu ela, parecendo assustada como eu nunca tinha visto. — Meus irmãos imortais. Phobos e Deimos.
Sentamos num banco do parque enquanto Clarisse me contava a história. Eu não estava muito preocupado em voltar para a escola. A sra. White chegaria à conclusão de que a enfermeira teria me mandado para casa, e o sexto tempo era aula de trabalhos manuais. O sr. Bell nunca fazia chamada.
— Então me deixe entender isso direito. Você pegou o carro do seu pai para dar uma volta e agora ele sumiu.
— Não é um carro — rosnou Clarisse. — É uma quadriga de guerra! E ele me disse que pegasse. É como... um teste. Eu deveria trazê-la de volta ao pôr do sol. Mas...
— Seus irmãos roubaram o carro de você.
— Roubaram a quadriga — corrigiu ela. — Normalmente, são eles que a guiam, entende? E não gostam que ninguém mais o faça. Então roubaram a quadriga e me perseguiram com esses pássaros idiotas que disparam flechas.
— Os animais de estimação do seu pai?
Ela assentiu, chateada.
— Eles guardam o templo. De qualquer forma, se eu não encontrar a quadriga...
Parecia que ela estava prestes a ter um ataque de nervos. Eu não a culpo. Já vi seu pai, Ares, ficar irritado, e não foi uma visão agradável. Se Clarisse o decepcionasse, ele pegaria pesado com ela. Muito pesado.
— Vou ajudar você — ofereci.
— Por que faria isso? Eu não sou sua amiga — devolveu ela, irritada.
Não pude argumentar diante daquilo. Clarisse tinha agido mal comigo um milhão de vezes, mas, ainda assim, eu não gostava da ideia de ela ou qualquer outra pessoa estar na mira de Ares. Eu tentava descobrir como explicar isso a ela quando ouvimos uma voz masculina.
— Ah, olhe só. Acho que ela andou chorando!
Um garoto mais velho estava encostado num telefone público. Usava jeans surrado, camiseta preta e jaqueta de couro, e uma bandana cobria seus cabelos. Tinha uma faca presa ao cinto. Seus olhos eram da cor de chamas.
— Phobos — Clarisse cerrou os punhos. — Onde está a quadriga, seu idiota?
— Você a perdeu — provocou ele. — Não pergunte a mim.
— Seu...
Clarisse desembainhou a espada e partiu para o ataque, mas Phobos desapareceu bem no meio do golpe e a lâmina acertou o poste do telefone público. Ele apareceu no banco ao meu lado. Estava rindo, mas parou quando encostei a ponta de Contracorrente em sua garganta.
— É melhor você devolver aquela quadriga — eu disse a ele. — Antes que eu me irrite.
Phobos me olhou com desprezo e tentou parecer durão, ou tão durão quanto alguém pode ficar com uma espada na garganta.
— Quem é o seu namoradinho, Clarisse? Agora você precisa de ajuda para vencer suas batalhas?
— Ele não é meu namorado! — Com um puxão, Clarisse tirou sua espada do poste. — Não é nem meu amigo. Esse é Percy Jackson.
Algo mudou na expressão de Phobos. Ele pareceu surpreso, talvez até nervoso.
— O filho de Poseidon? Aquele que deixou papai furioso? Ah, isso é muito bom, Clarisse. Você está andando com um arqui-inimigo?
— Eu não estou andando com ele!
Os olhos de Phobos brilharam num vermelho bem vivo.
— Por favor, não! — gritou Clarisse.
Ela golpeou o ar como se estivesse sendo atacada por insetos invisíveis.
— O que está fazendo com ela? — eu quis saber.
Clarisse se afastou para a rua, balançando sua espada furiosamente.
— Pare com isso! — eu disse a Phobos.
Apertei minha espada um pouco mais fundo em sua garganta, mas ele simplesmente sumiu, reaparecendo perto do telefone público.
— Não se anime tanto, Jackson — disse Phobos. — Só mostrei a ela aquilo de que ela tem medo.
O brilho desapareceu dos seus olhos. Clarisse se curvou, respirando com dificuldade.
— Seu desgraçado — arfou ela. — Eu vou... eu vou pegar você.
Phobos se virou para mim.
— E quanto a você, Percy Jackson? O que você teme? Sabe, vou descobrir. Eu sempre descubro.
— Devolva a quadriga. — Tentei manter minha voz calma. — Enfrentei seu pai uma vez. Você não me assusta.
— Nada a temer além do medo em si. Não é o que dizem? — Phobos riu. — Bom, deixe eu contar um segredinho a você, meio-sangue. Eu sou o medo. Se você quer a quadriga, venha pegar. Está sobre as águas. Você vai encontrá-la onde vivem os animaizinhos selvagens, exatamente o tipo de lugar a que você pertence.
Ele estalou os dedos e desapareceu numa cortina de fumaça amarela.
Preciso dizer: conheci muitos deuses inferiores e monstros de que não gostei, mas Phobos ganhou o prêmio máximo. Não gosto de valentões. Nunca pertenci à turma dos populares da escola, então passei a maior parte da minha vida me defendendo de punks que tentavam amedrontar a mim e a meus amigos. A forma como Phobos riu de mim e fez Clarisse desmoronar só com o olhar... Queria dar uma lição nesse cara. Ajudei Clarisse a se levantar. Seu rosto ainda estava coberto pelo suor.
— Agora você quer ajuda? — perguntei.
Pegamos o metrô preparados para novos ataques, mas ninguém nos incomodou. Enquanto viajávamos, Clarisse me falou sobre Phobos e Deimos.
— Eles são deuses inferiores — explicou ela. — Phobos é o medo. Deimos é o pânico.
— Qual é a diferença?
Ela deu de ombros.
— Deimos é maior e mais feio, eu acho. Ele é bom em enlouquecer multidões. Phobos é mais, digamos, pessoal. Ele consegue invadir a sua mente.
— É daí que vem a palavra fobia?
— Sim — resmungou ela. — Ele tem muito orgulho disso. Todas aquelas fobias nomeadas em homenagem a ele. O idiota.
— E por que eles não querem que você conduza a quadriga?
— Isso costuma ser um ritual apenas para os filhos homens de Ares, quando completam quinze anos. Eu sou a primeira menina a ter uma chance em muitos anos.
— Bom para você.
— Diga isso a Phobos e a Deimos. Eles me odeiam. Eu tenho de levar aquela quadriga de volta ao templo.
— Onde é o templo?
— Píer 86. O Intrepid.
— Ah.
Aquilo fazia sentido, pensei na hora. Na verdade, eu nunca estivera a bordo do antigo porta-aviões, mas sabia que era usado como uma espécie de museu militar. Provavelmente, estava cheio de armas e bombas e outros brinquedos perigosos. Exatamente o tipo de lugar que um deus da guerra gostaria de frequentar.
— Talvez tenhamos cerca de quatro horas antes do pôr do sol — supus. — Pode ser tempo suficiente, se acharmos a quadriga.
— Mas o que Phobos quis dizer com “sobre as águas”? Estamos numa ilha, pelo amor de Zeus. Pode estar em qualquer lugar!
— Ele disse alguma coisa sobre animais selvagens — lembrei. — Animaizinhos selvagens.
— Um zoológico?
Concordei. Um zoológico sobre as águas pode ser o do Brooklyn, ou talvez... algum lugar de difícil acesso, com pequenos animais selvagens. Algum lugar onde ninguém pensaria em procurar uma quadriga.
— Staten Island — sugeri. — Há um pequeno zoológico lá.
— Talvez — respondeu Clarisse. — Esse parece o tipo de lugar fora do comum em que Phobos e Deimos esconderiam alguma coisa. Mas se estivermos errados...
— Não temos tempo para estarmos errados.

***

Descemos na Times Square e pegamos o trem número 1 para o centro de Manhattan, em direção ao cais das barcas. Embarcamos para Staten Island às três e meia da tarde, com um monte de turistas que lotavam as grades do deque superior, tirando fotografias conforme passávamos pela Estátua da Liberdade.
— Ele a esculpiu em homenagem à mãe — comentei, observando a estátua.
— Quem? — Clarisse olhou para mim com desdém.
— Bartholdi — respondi. — O cara que fez a Estátua da Liberdade. Ele era filho de Atena e projetou a estátua de forma que se parecesse com a mãe dele. Bom, foi o que Annabeth me contou.
Clarisse revirou os olhos. Annabeth era minha melhor amiga e tinha loucura por arquitetura e monumentos. Acho que, às vezes, sua fixação pelo assunto acabava me contaminando.
— Inútil — Clarisse considerou. — Se não ajuda você na batalha, é uma informação inútil.
Eu poderia ter discutido com ela, mas, logo em seguida, a barca se inclinou como se tivesse batido em uma rocha. Os turistas escorregaram, derrubando uns nos outros. Clarisse e eu corremos para a frente do barco. A água abaixo de nós começou a borbulhar. Então, a cabeça de uma serpente marinha emergiu na baía. O monstro era, no mínimo, tão grande quanto o barco. Era cinza e verde, e possuía uma cabeça de crocodilo e dentes em formato de lâminas afiadas. Cheirava como... bom, como alguma coisa que tivesse acabado de sair do fundo das águas do porto de Nova York. Montado em seu pescoço, estava um garoto forte que usava uma armadura grega de cor preta. Seu rosto estava coberto de feias cicatrizes, e ele segurava uma lança.
— Deimos! — berrou Clarisse.
— Olá, irmã! — Seu sorriso era quase tão terrível quanto o da serpente. — Que tal uma brincadeira?
O monstro rugiu. Os turistas gritaram e se dispersaram. Não sei exatamente o que viram, a Névoa geralmente evita que mortais vejam monstros em sua forma verdadeira. Mas, seja lá o que tenham visto, deixou-os aterrorizados.
— Deixe-os em paz! — berrei.
— Ou o quê, filho do deus do mar? — Deimos desdenhou. — Meu irmão me disse que você é um banana! Além disso, eu amo pânico. Eu vivo em meio ao pânico!
Ele incitou a serpente a golpear a barca com a cabeça, e, com o impacto, ela espalhou água para trás. Alarmes dispararam. Passageiros se atropelaram ao tentar fugir. Deimos gargalhava de felicidade.
— Chega — murmurei. — Clarisse, agarre aqui.
— O quê?
— Agarre meu pescoço. Vamos dar uma volta.
Ela não protestou. Agarrou-se a mim e eu comecei a contar:
— Um, dois, três... pule!
Pulamos do deque superior direto para dentro da baía, mas ficamos embaixo d’água só por um instante. Senti o poder do oceano tomar conta de mim. Induzi a água a fazer um redemoinho em torno de nós, aumentando a velocidade até que surgíssemos no topo de uma tromba d’água de dez metros de altura. Então nos conduzi diretamente ao monstro.
— Acha que consegue cuidar de Deimos? — berrei para Clarisse.
— Eu pego ele! — respondeu ela. — Só me faça descer dez metros.
Avançamos rapidamente em direção à serpente. Assim que ela expôs sua presa, desviei a tromba d’água para o lado e Clarisse pulou. Ela foi de encontro a Deimos e os dois caíram na água. A serpente veio atrás de mim. Rapidamente, virei a tromba d’água para encará-la. Então, reuni todo o meu poder e induzi a água a subir cada vez mais.
Uouuuu!
Milhões de litros de água salgada atingiram o monstro. Pulei em sua cabeça, destampei Contracorrente e cortei com toda a minha força o pescoço da criatura. O monstro rugiu. Sangue verde jorrou da ferida, e a serpente afundou nas ondas. Mergulhei e observei a criatura enquanto ela recuava em direção ao mar aberto. Isto é bom nas serpentes marinhas: elas se tornam bebês gigantes quando estão feridas. Clarisse emergiu perto de mim; cuspindo e tossindo. Nadei até ela e a agarrei.
— Você pegou Deimos?
Clarisse balançou a cabeça.
— O covarde desapareceu enquanto lutávamos. Mas tenho certeza de que o veremos de novo. E a Phobos também.
Os turistas ainda corriam em pânico pela barca, mas não havia sinais de ninguém ferido. O barco não parecia estar danificado. Decidi que não devíamos ficar ali. Segurei Clarisse pelo braço e fiz com que as ondas nos levassem para Staten Island.
No oeste, o sol se punha sobre a costa de Jersey. Nosso tempo se esgotava. Eu nunca tinha passado muito tempo em Staten Island. Percebi que era maior do que eu imaginava e não muito divertida para caminhadas. As ruas seguiam trajetos confusos e tudo parecia ficar no alto. Eu estava seco (nunca me molho no oceano, a menos que eu queira), mas as roupas de Clarisse ainda pingavam. Ela deixava pegadas imundas pela calçada e o motorista do ônibus não nos deixou entrar.
— Não vamos conseguir chegar a tempo — observou ela.
— Pare de pensar assim. — Tentei parecer otimista, mas eu também começava a duvidar.
Gostaria que tivéssemos tido reforços. Dois semideuses contra dois deuses inferiores já não era uma disputa justa, e eu não tinha certeza do que faríamos quando encontrássemos Phobos e Deimos ao mesmo tempo. Ficava relembrando o que Phobos tinha dito: “E quanto a você, Percy Jackson? O que você teme? Sabe, vou descobrir”. Depois de nos arrastarmos até a metade da ilha, de passarmos por várias casas de subúrbio, algumas igrejas e um McDonald’s, finalmente avistamos uma placa em que se lia zoológico. Viramos a esquina e seguimos pela rua sinuosa com algumas árvores em um dos lados até que chegamos à entrada. A senhora da bilheteria nos observou com olhar de suspeita, mas, graças aos deuses, eu tinha dinheiro suficiente para pagar nossas entradas. Andamos pelo viveiro dos répteis e Clarisse parou de repente.
— Lá está ela.
Ela estava estacionada num cruzamento entre a fazendinha das crianças e o lago das lontras: uma enorme quadriga vermelha e dourada atrelada a quatro cavalos pretos. A quadriga era decorada com incrível riqueza de detalhes. Seria bonita se todas as imagens não mostrassem pessoas morrendo dolorosamente. Os cavalos soltavam fogo pelas narinas.
Famílias com carrinhos de bebês passavam ao lado da quadriga como se ela não existisse. Acho que a Névoa em torno dela devia estar muito forte, pois o único disfarce da quadriga era um bilhete escrito à mão colado no peito de um dos cavalos em que se lia VEÍCULO OFICIAL DO ZOOLÓGICO.
— Onde estão Phobos e Deimos? — sussurrou Clarisse, desembainhando sua espada.
Não os via em lugar algum, mas isso só podia ser uma armadilha. Eu me concentrei nos cavalos. Normalmente, consigo falar com cavalos, já que meu pai os criou.
Ei, cavalos, labaredas legais essas. Venham aqui!, chamei. Um deles relinchou desdenhosamente. Certo, consegui entender seus pensamentos. Ele me chamou de alguns nomes que não posso repetir.
— Vou tentar pegar as rédeas — Clarisse avisou. — Os cavalos me conhecem, me dê cobertura.
— Tudo bem.
Eu não estava certo de como deveria dar cobertura a ela com a espada, mas mantive meus olhos bem abertos enquanto Clarisse se aproximava da quadriga. Ela andou em volta dos cavalos, quase na ponta dos pés. E congelou quando uma senhora passou com uma garotinha de uns três anos de idade.
— Cavalinho pegando fogo! — disse a menina.
— Não seja boba, Jessie — a mãe respondeu com uma voz confusa. — Isso é um veículo oficial do zoológico.
A garotinha tentou argumentar, mas a mãe agarrou sua mão e elas continuaram andando. Clarisse chegou perto da quadriga. A mão dela estava a quinze centímetros do arreio quando os cavalos empinaram, relinchando e soltando chamas. Phobos e Deimos apareceram na quadriga, os dois agora vestidos com negras armaduras de guerra. Phobos deu uma risada, seus olhos vermelhos brilhando. As feições assustadoras de Deimos pareciam ainda mais terríveis de perto.
— A caçada começou! — gritou Phobos.
Clarisse tombou para trás enquanto ele chicoteava os cavalos e conduzia a quadriga diretamente para cima de mim. Bom, agora eu gostaria de poder contar a vocês que cometi um ato heroico, como permanecer parado diante um grupo feroz de cavalos lança-chamas munido somente com a minha espada. Mas a verdade é que eu fugi. Pulei uma lata de lixo e uma grade, mas não houve meio de eu ser mais rápido que a quadriga. Ela foi de encontro à grade logo atrás de mim, escavando tudo pelo seu caminho.
— Percy, cuidado! — gritou Clarisse, como se eu precisasse que alguém me dissesse aquilo.
Saltei e pousei numa ilha de pedra no meio da área das lontras. Fiz com que a água formasse uma coluna para fora do lago e se jogasse sobre os cavalos, apagando temporariamente suas chamas e deixando-os confusos. As lontras não ficaram felizes com isso. Elas tagarelaram e gritaram, e entendi que era melhor sair da sua ilha bem rápido, antes que mamíferos marinhos enfurecidos começassem a me perseguir também.
Corri enquanto Phobos xingava e tentava controlar seus cavalos. Clarisse aproveitou a chance para pular nas costas de Deimos justamente quando ele começava a empunhar sua lança. Os dois saltaram da quadriga no momento em que ela tombou para a frente. Pude ouvir Deimos e Clarisse começarem a lutar, espada contra espada. Mas eu não tinha tempo para me preocupar com isso porque Phobos estava me perseguindo novamente. Avancei rapidamente em direção ao aquário com a quadriga em meu encalço.
— Ei, Percy! — provocou Phobos. — Tenho uma coisa para você!
Olhei para trás e vi a quadriga derreter e os cavalos se transformarem em aço, envolvendo uns aos outros como se bonecos de barro estivessem sendo retrabalhados. A quadriga se remodelou em uma caixa preta de metal com a parte de baixo como a de um trator, uma pequena torre e um longo cano de arma. Um tanque de guerra. Reconheci por causa de uma pesquisa que tivera de fazer para a aula de história. Phobos dava risadas para mim do alto de um tanque da Segunda Guerra Mundial.
— Diga X! — disse ele.
Rolei para o lado quando a arma disparou. CABUUUM!
Um quiosque de suvenires explodiu, e bichos de pelúcia, canecas de plástico e câmeras descartáveis voaram em todas as direções. Enquanto Phobos recarregava sua arma, eu me levantei e mergulhei no aquário. Eu queria me cercar de água. Isso sempre aumentava meu poder. Além do mais, era possível que Phobos não conseguisse fazer a quadriga passar pela porta. Claro que, se ele explodisse tudo, não faria diferença...
Corri pelas salas iluminadas por uma estranha luz azul-clara vinda dos tanques de exposição de peixes. Sépias, peixes-palhaços e enguias, todos me encararam à medida que eu passava correndo por eles. Filho do deus do mar! Filho do deus do mar!, eu podia ouvir suas pequenas mentes sussurrarem. É ótimo quando lulas o consideram uma celebridade.
Parei no final do aquário para escutar. Não ouvi nada. E então... vrum, vrum. Um tipo diferente de motor. Olhei sem acreditar quando Phobos apareceu pilotando uma Harley-Davidson. Eu já tinha visto aquela moto: seu tanque de combustível decorado com chamas, os coldres com espingardas, o assento de couro parecido com pele humana. Aquela era a mesma moto que Ares pilotava quando o vi pela primeira vez, mas nunca imaginei que ela era apenas outra forma para sua quadriga de guerra.
— Oi, perdedor — Phobos me cumprimentou puxando uma enorme espada da bainha. — Hora de ficar com medo.
Empunhei minha espada, determinado a encará-lo. Então, os olhos de Phobos incandesceram e cometi o erro de olhar dentro deles.
De repente, eu estava num lugar diferente. Era o Acampamento Meio-Sangue, meu lugar favorito em todo o mundo, e ele estava em chamas. A floresta pegava fogo. Saía fumaça dos chalés. As colunas gregas do pavilhão do refeitório haviam tombado e a Casa Grande era uma ruína ardente. Meus amigos, ajoelhados, imploravam. Annabeth, Grover e todos os outros campistas. Salve a gente, Percy!, eles choramingavam. Faça a escolha!
Fiquei paralisado. Era o momento que sempre temi: a profecia que deveria ser cumprida quando eu completasse dezesseis anos. Eu teria de escolher entre salvar ou destruir o Monte Olimpo. Agora chegara o momento e eu não tinha a menor ideia do que fazer. O acampamento queimava. Meus amigos me encaravam, pedindo ajuda. Meu coração estava disparado. Eu não podia me mover. E se eu fizesse a coisa errada? Então, ouvi as vozes dos peixes do aquário. Filho do deus do mar! Acorde!
Subitamente, senti o poder dos oceanos me dominar novamente, milhares de litros de água salgada e centenas de peixes tentavam chamar minha atenção. Eu não estava no acampamento. Era uma ilusão. Phobos me mostrara meu temor mais profundo. Pisquei e vi a espada de Phobos vindo na direção da minha cabeça. Empunhei Contracorrente e bloqueei o golpe segundos antes que ele me partisse em dois. Contra-ataquei e acertei Phobos no braço. Icor dourado, o sangue dos deuses, ensopou sua camisa.
Phobos rosnou e avançou sobre mim. Desviei facilmente. Sem o seu poder do medo, Phobos não era nada. Ele não era nem um guerreiro razoável. Eu o contive, golpeando seu rosto e deixando-lhe um corte na bochecha. Quanto mais irritado ele ficava, mais desajeitadamente agia. Eu não podia matá-lo. Ele era imortal. Mas não era possível saber disso levando em conta somente sua expressão. O deus do medo parecia amedrontado.
Finalmente, chutei-o contra a fonte de água. Sua espada foi parar no ba-nheiro das mulheres. Agarrei-o pelos cordões da sua armadura e o levantei até a altura do meu rosto.
— Você vai desaparecer agora — ordenei. — Vai sair do caminho de Clarisse. E se eu o vir de novo, vou lhe dar uma cicatriz maior e num lugar muito mais doloroso!
Ele engoliu em seco.
— Haverá uma próxima vez, Jackson! — E se dissolveu numa fumaça amarela. Eu me virei para o tanque de exposição de peixes.
— Valeu, pessoal!
Então, observei a moto de Ares. Eu nunca havia pilotado uma superpoderosa quadriga Harley-Davidson de guerra. Quão difícil poderia ser? Subi na moto, acionei a ignição e saí do aquário para ajudar Clarisse.

***

Não tive problemas para encontrá-la, apenas segui o rastro de destruição. Grades foram derrubadas e animais corriam livremente. Texugos e lêmures estavam explorando a pipoqueira. Um leopardo gordo espreguiçava-se num banco do parque, rodeado de penas de pombo. Estacionei a moto próximo à fazendinha das crianças, e lá estavam Deimos e Clarisse na área das cabras. Clarisse estava de joelhos. Corri até ela, mas parei subitamente quando vi como Deimos havia mudado sua forma. Agora ele era Ares: o grande deus da guerra, usando couro preto e óculos de sol. Todo o seu corpo soltava fumaça furiosamente enquanto ele levantava o punho para Clarisse.
— Você me decepcionou de novo! — o deus da guerra elevou a voz. — Eu a avisei do que aconteceria!
Ele tentou acertá-la, mas Clarisse arrastou-se para longe.
— Não! Por favor! — clamou ela.
— Garota boba!
— Clarisse! — gritei. — Isso é uma ilusão. Enfrente-o!
A forma de Deimos vacilou.
— Eu sou Ares! — insistiu ele. — E você é uma garota desprezível! Eu sabia que você me decepcionaria. Agora vai sofrer minha ira.
Eu queria avançar e lutar com Deimos, mas, de alguma maneira, sabia que não podia ajudar. Clarisse precisava fazer isso. Esse era o seu maior medo. Ela teria de superá-lo sozinha.
— Clarisse — chamei. Ela se virou e eu tentei sustentar seu olhar. — Enfrente-o. Isso é só fachada. Levante-se!
— Eu... eu não consigo.
— Sim, você consegue. Você é uma guerreira. Levante!
Ela hesitou. E então começou a se erguer.
— O que está fazendo? — Ares elevou a voz. — Humilhe-se por misericórdia, garota!
Clarisse deu um breve suspiro.
— Não — disse ela, calmamente.
— O quê?
— Estou cansada de ser amedrontada por você. — Ela empunhou a espada.
Deimos atacou, mas Clarisse se desviou do golpe. Ela cambaleou, mas não caiu. — Você não é Ares — afirmou ela. — Você não é nem mesmo um bom guerreiro.
Deimos rosnou de frustração. Ele atacou de novo, Clarisse estava preparada. Ela o desarmou e o atingiu no ombro, não tão profundamente, mas o suficiente para ferir mesmo um deus inferior. Ele uivou de dor e começou a incandescer.
— Não olhe! — avisei a Clarisse.
Desviamos nossos olhos enquanto Deimos explodia em luz dourada, sua verdadeira forma divina, e desaparecia. Estávamos sozinhos, exceto pelas cabras da fazendinha, que mordiscavam nossas roupas em busca de migalhas. A moto se transformou novamente em uma quadriga puxada a cavalos.
Clarisse me observou cautelosamente. Ela limpou a palha e o suor do rosto.
— Você não viu isso. Você nunca viu nada disso.
Eu dei uma risada.
— Você se saiu bem.
Ela olhou para o céu, que ficava vermelho atrás das árvores.
— Suba na quadriga — disse ela. — Ainda temos uma longa viagem a fazer.
Alguns minutos depois, chegamos à estação das barcas de Staten Island e relembramos o óbvio: estávamos numa ilha. A barca não transporta carros. Ou quadrigas. Ou motos.
— Ótimo — resmungou Clarisse. — O que fazemos agora? Conduzimos essa coisa pela Ponte Verrazano?
Nós dois sabíamos que não havia tempo. Existiam pontes para o Brooklyn e para Nova Jersey, mas ambos os caminhos exigiriam horas para levar a quadriga de volta a Manhattan. Mesmo se conseguíssemos induzir as pessoas a pensarem que aquilo era um carro normal. Então, tive uma ideia.
— Vamos pegar um caminho direto.
— O que você quer dizer? — Clarisse franziu as sobrancelhas.
Fechei os olhos e comecei a me concentrar.
— Siga em frente. Vá!
Clarisse estava tão desesperada que não hesitou. Ela gritou “Eia!” e chicoteou os cavalos. Eles avançaram em direção à água. Imaginei o oceano se tornando sólido, as ondas se transformando numa superfície firme até Manhattan. A quadriga de guerra bateu na arrebentação, a respiração ardente dos cavalos espalhava fumaça ao nosso redor. Andamos por cima das ondas diretamente até o porto de Nova York.
Chegamos ao Píer 86 bem no momento em que o céu ganhava a cor roxa. O USS Intrepid, templo de Ares, era uma enorme parede cinza de metal diante de nós, a pista de decolagem pontilhada de aeronaves e helicópteros. Estacionamos a quadriga na rampa e descemos dela. Pelo menos uma vez eu me sentia feliz por estar em terra firme. Concentrar-me em manter a quadriga sobre as ondas foi uma das coisas mais difíceis que já fiz. Eu estava exausto.
— É melhor eu sair daqui antes que Ares chegue — eu disse.
Clarisse concordou.
— Ele provavelmente mataria você assim que o visse.
— Parabéns — cumprimentei-a. — Acho que você passou no seu teste de direção.
Ela enrolou as rédeas na mão.
— Sobre aquilo que você viu, Percy. Aquilo de que eu tenho medo, quer dizer...
— Não vou contar a ninguém.
Ela me olhou com desconforto.
— Phobos assustou você?
— Sim. Vi o acampamento em chamas. Todos os meus amigos imploravam por ajuda, e eu não sabia o que fazer. Por um instante, não consegui me mover. Eu estava paralisado. Sei como você se sentiu.
Ela baixou os olhos.
— Eu, hum... acho que eu devo dizer... — As palavras pareciam estar presas na sua garganta. Não tinha certeza se algum dia na sua vida Clarisse dissera “obrigada”.
— Não precisa se incomodar — eu disse.
Comecei a me afastar, mas ela me chamou.
— Percy?
— Sim?
— Quando você, hum... teve aquela visão com seus amigos...
— Você era um deles — dei minha palavra. — Só não conte a ninguém, está bem? Ou vou ter de matar você.
Um sorriso fraco passou pelo rosto de Clarisse.
— A gente se vê.
— A gente se vê.
Eu me encaminhei para o metrô. Aquele tinha sido um longo dia, e eu estava pronto para voltar para casa.

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