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O Cajado de Serápis - Completo para ler online.

.. quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Annabeth

Até ela ter avistado o monstro de duas cabeças, Annabeth não pensou que o dia dela poderia piorar ainda mais.
Ela gastara a manhã inteira fazendo um trabalho extra para o colégio (matar aula regularmente para salvar o mundo de monstros e deuses gregos pirados estava bagunçando seriamente seu rendimento escolar). Depois rejeitara um filme com seu namorado Percy e alguns de seus amigos para que pudesse se candidatar para um estágio de verão em uma empresa de arquitetura local. Infelizmente, seu cérebro havia virado mingau. Ela tinha certeza de que havia estragado a entrevista.
Finalmente, perto das quarto da tarde, ela marchou através da Washington Square Park a caminho da estação do metrô quando pisou em uma pilha fresca de estrume de vaca.
Ela olhou raivosamente para o céu.
— Hera!
Os outros pedestres lançaram olhares engraçados, mas Annabeth não se importou. Ela estava cansada das piadas da deusa. Annabeth tinha feito tantas missões para Hera, mas a Rainha dos Céus continua a deixar presentes do seu animal sagrado bem onde Annabeth poderia pisar. A deusa deveria ter um rebanho de vacas invisíveis patrulhando Manhattan.
No momento em que Annabeth chegou à estação West Fourth Street, ela estava debilitada e exausta e queria apenas tomar o trem F em direção à parte alta da cidade, até o apartamento de Percy. Já era muito tarde para o cinema, mas talvez eles conseguissem um jantar ou algo assim.
Então ela avistou o monstro.
Annabeth tinha visto algumas coisas estranhas antes, mas essa besta definitivamente entrava em sua lista “O Que os Deuses Estavam Pensando?”. Parecia um leão e lobo amarrados juntos, com uma concha de caranguejo-ermitão encravada nas costas.
A concha em si era uma espiral marrom rugosa, como um cone de waffle – com quase dois metros de comprimento e uma rachadura irregular ao meio, como se tivesse partido e depois colada de volta. Brotando de cima estavam as pernas dianteiras e as cabeças – um lobo cinzento no lado esquerdo, um leão de juba dourada no direito.
Os dois animais não pareciam felizes em dividir a mesma concha. Eles a arrastaram para baixo da plataforma enquanto tentavam puxar em diferentes direções. Rosnaram um para o outro com irritação. Em seguida, os dois congelaram e cheiraram o ar.
Os passageiros continuavam seguindo o fluxo. A maioria desviava do monstro e o ignorava. Outros apenas franziam as sobrancelhas ou demonstravam irritação.
Annabeth havia visto a Névoa em ação varias vezes antes, mas sempre ficava maravilhada em como o véu mágico conseguia distorcer a visão dos mortais, fazendo com que mesmo o monstro mais assustador parecesse algo explicável – um cachorro abandonado ou talvez um morador de rua envolto em um cobertor.
As narinas do monstro alargaram. Antes que Annabeth pudesse decidir o que fazer, as duas cabeças viraram e se fixaram nela.
A mão de Annabeth disparou para sua faca. Então ela se lembrou de que não tinha uma. Neste momento, sua arma mais mortal era a mochila, que estava carregada com pesados livros de arquitetura da biblioteca pública.
Ela estabilizou sua respiração. O monstro parou a uns nove metros de distância.
Lidar com um leão-lobo-caranguejo no meio de uma estação de metrô lotada não seria sua primeira escolha, mas se precisasse, ela o faria. Ela era uma filha de Atena.
Ela encarou a fera, deixando que soubesse que não estava de brincadeira.
— Pode vir, Caran. — ela disse. — Espero que você tenha alta tolerância para dor.
As cabeças de leão e lobo mostraram os dentes. Então o chão ribombou. Ar fluiu através do túnel enquanto um trem chegava.
O monstro rosnou para Annabeth. Ela poderia jurar que viu um olhar de pesar em seus olhos, como se pensando, Eu adoraria rasgá-la em pedacinhos, mas tenho negócios em outro lugar.
Em seguida, Caran virou-se e limitou-se a ir embora, arrastando sua enorme concha atrás de si. Ele desapareceu escadas acima, rumando em direção ao trem A.
Por um momento, Annabeth estava atordoada demais para se mover. Ela raramente via um monstro deixar um semideus em paz desta forma. Quando tinham a chance, quase sempre atacavam.
Se este caranguejo-ermitão de duas cabeças tinha algo mais importante a fazer do que matá-la, Annabeth queria saber o que era. Ela não poderia apenas deixar o monstro partir, prosseguindo com seus planos nefastos e utilizando transporte público de graça.
Ela olhou desejosamente para o trem F que a levaria para o apartamento de Percy. Então correu escada acima atrás do monstro.


Annabeth saltou a bordo segundos antes de as portas se fecharem. O trem se afastou da plataforma e mergulhou na escuridão. As luzes do teto piscaram. Viajantes balançaram para trás e para frente. Cada assento estava ocupado. Uma dúzia de passageiros de pé, cambaleando, agarrava-se aos suportes de ferro.
Annabeth não conseguia ver Caran até que alguém na frente gritou:
— Cuidado, esquisito!
O lobo-leão-caranguejo estava abrindo caminho para frente, rosnando para os mortais, mas os passageiros do metrô só pareciam irritados. Talvez eles vissem o monstro como um cara bêbado qualquer.
Annabeth o seguiu.
Enquanto Caran se preocupava em abrir as portas e seguir para o próximo vagão, Annabeth notou que sua concha estava brilhando levemente.
Já estava assim antes? Em torno do monstro símbolos vermelho néon brilhavam – letras gregas, signos astrológicos e símbolos desenhados. Hieróglifos egípcios.
Um frio trespassou os ombros de Annabeth. Ela se lembrou de algo que Percy tinha lhe contado há algumas semanas – sobre um encontro que ele teve que parecia tão impossível que ela assumiu que estivesse brincando.
Mas agora...
Ela passou através da multidão, seguindo Caran para o próximo vagão.
A concha da criatura estava definitivamente brilhando mais forte agora. Enquanto Annabeth se aproximava, ela começava a ficar enjoada. Sentiu uma sensação quente de puxão em seu intestino, como se tivesse um anzol em seu umbigo puxando-a em direção ao monstro.
Annabeth tentou acalmar seus nervos. Ela dedicou sua vida a estudar antigos espíritos gregos, animais e daemons. O conhecimento era a sua arma mais importante. Mas essa coisa caranguejo de duas cabeças – ela não tinha nenhuma referência para ele. Sua bússola interna estava girando inutilmente.
Ela desejou ter uma saída. Tinha seu celular, mas, mesmo que pudesse fazer a ligação do túnel, quem chamaria? A maioria dos outros semideuses não carregavam telefones. Os sinais atraíam monstros. Percy estava a caminho da parte alta da cidade. A maioria de seus amigos estava de volta ao Acampamento Meio-Sangue na costa norte de Long Island.
Caran continuou se dirigindo para a frente do trem.
No momento em que Annabeth o alcançou no vagão seguinte, a aura do monstro era tão forte que até mesmo os mortais começaram a notar. Muitos enrugaram o nariz e se curvaram em seus lugares, como se alguém tivesse aberto um armário cheio de comida estragada. Outros desmaiaram no chão.
Annabeth se sentiu tão enjoada que queria recuar, mas a sensação do anzol mantinha-se puxando seu umbigo, atraindo-a para o monstro.
O trem parou na estação de Fulton Street. Assim que as portas se abriram, cada passageiro que ainda estava consciente tropeçou para fora. A cabeça de lobo do Caran se virou para uma senhora, agarrando a bolsa dela com os dentes quando ela tentou fugir.
— Hey! — Annabeth gritou.
O monstro deixou a mulher ir.
Os dois pares de olhos se fixaram em Annabeth, como se pensassem, Você quer morrer?
Então, o monstro jogou as suas cabeças para trás e rugiram em harmonia. O som atingiu Annabeth como um picador de gelo entre os olhos. As janelas do trem quebraram. Os mortais desmaiados foram assustados de volta à consciência. Alguns conseguiram rastejar pelas portas do vagão. Outros pularam através das janelas quebradas.
Através da visão turva, Annabeth viu o monstro agachar-se em seus antebraços incompatíveis, pronto para atacar.
O tempo passou devagar. Ela estava vagamente consciente do fechamento das portas quebradas, o trem agora vazio saindo da estação. Seria possível que o condutor não percebeu o que estava acontecendo? Estava o trem seguindo no piloto automático?
A apenas dez metros de distância agora, Annabeth notou novos detalhes sobre o monstro. Sua aura vermelha parecia mais brilhante ao longo da junção de sua concha. Letras gregas e hieróglifos egípcios brilhantes eram expelidos como gás vulcânico de uma fissura em alto mar. A pata dianteira esquerda do leão era raspada no pulso, tatuada com uma série de pequenas listras pretas. Presa dentro da orelha esquerda do lobo estava uma etiqueta laranja com um preço: $ 99,99.
Annabeth agarrou a alça de sua mochila. Ela estava pronta para atingir o monstro, mas não faria muito sem uma arma. Em vez disso, ela contou com sua tática habitual ao enfrentar um inimigo mais forte. Ela começou a falar.
— Você é feito de duas partes diferentes — disse ela. — Você é como... pedaços de uma estátua que ganharam vida. Você sofre uma fusão?
Foi uma conjectura total, mas o rosnado do leão fez Annabeth achar que tinha atingido o limite. O lobo mordeu a bochecha do leão como se lhe dizendo para se calar.
— Vocês não estão acostumados a trabalhar em conjunto — Annabeth adivinhou. — Sr. Leão, você tem um código de identificação em sua perna. Você era um artefato em um museu. Talvez o Met?
O leão rugiu tão alto que os joelhos de Annabeth vacilaram.
— Acho que é um sim. E você, Sr. Lobo... a etiqueta em seu ouvido... você estava à venda em alguma loja de antiguidades?
O lobo rosnou e deu um passo na direção dela.
Enquanto isso, o trem continuou nos túneis sob o Rio East. Vento frio rodopiou para dentro através das janelas quebradas e fez os dentes de Annabeth baterem.
Todos os seus instintos lhe diziam para correr, mas suas articulações pareciam estar dissolvendo. A aura do monstro foi ficando mais brilhante, enchendo o ar com os símbolos místicos e luz sangrenta.
— Você... você está ficando mais forte — Annabeth observou. — Você está indo a algum lugar, não é? E quanto mais próximo chega...
As cabeças do monstro rugiram novamente em harmonia. Uma onda de energia vermelha percorreu o vagão. Annabeth teve que lutar para se manter consciente.
Caran se aproximou. Sua concha se expandiu, a fissura no centro queimando como ferro fundido.
— Espere — Annabeth murmurou. — Eu – eu entendo agora. Você não está terminado ainda. Está à procura de outra parte. Uma terceira cabeça?
O monstro parou. Seus olhos brilharam com cautela, como se dissessem: Você leu o meu diário?
A coragem de Annabeth floresceu. Finalmente ela estava encontrando referências de seu inimigo. Ela conheceu muitas criaturas de três cabeças antes. Quando se tratava de seres míticos, três era uma espécie de número mágico. Fazia sentido que este monstro tivesse outra cabeça.
Caran tinha sido uma espécie de estátua, dividida em pedaços. Agora algo tinha despertado nele. Ele estava tentando se juntar novamente.
Annabeth decidiu que não podia deixar isso acontecer. Esses hieróglifos vermelhos e letras gregas brilhantes flutuavam em torno dele como um cabo de fusível queimando, irradiavam uma magia que parecia fundamentalmente errada, como se estivesse dissolvendo lentamente a estrutura celular de Annabeth.
— Você não é exatamente um monstro grego, é? — Ela se aventurou. — Você vem do Egito?
Caran não gostou do comentário. Ele mostrou suas presas e se preparou para saltar.
— Eia, garoto — disse ela. — Você não está com força total, está? Ataque-me agora, e você vai perder. Afinal de contas, vocês não confiam um no outro.
O leão inclinou a cabeça e rosnou.
Annabeth fingiu um olhar de choque.
— Sr. Leão! Como você pode dizer isso sobre o Sr. Lobo?
O leão piscou.
O lobo olhou para o leão e rosnou, desconfiado.
— E, Sr. Lobo! — Annabeth engasgou. — Você não deve usar esse tipo de linguagem sobre o seu amigo!
As duas cabeças se voltaram uma sobre a outra, mordendo e uivando. O monstro cambaleou quando suas patas foram em direções diferentes.
Annabeth sabia que ela só tinha comprado alguns segundos. Ela vasculhou seu cérebro, tentando descobrir o que essa criatura era e como poderia derrotá-la, mas não as características não correspondiam a qualquer coisa que ela conseguia se lembrar de suas aulas no Acampamento Meio-Sangue.
Ela considerou ficar atrás dele, talvez tentar quebrar a concha, mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, o trem ficou mais lento. Ele parou na estação High Street, a primeira parada no Brooklyn.
A plataforma estava estranhamente vazia, mas um flash de luz perto da escada de saída chamou a atenção de Annabeth. Uma jovem garota loura, vestida com roupas brancas, balançava um bastão de madeira, tentando acertar um estranho animal que rodava em torno de suas pernas, latindo furiosamente. Dos ombros para cima, a criatura parecia um Labrador retrivier preto, mas a sua traseira terminava num cônico áspero, como uma cauda de girino calcificada.
Annabeth teve tempo para pensar: a terceira peça.
Então a garota loira acertou o focinho do cão. Seu bastão brilhou com luz dourada, e o cão foi arremessado para trás – em linha reta através de uma janela quebrada na extremidade do vagão em que Annabeth estava.
A menina loura o seguiu. Ela saltou através das portas que se fechavam e o trem saiu da estação.
Por um momento, todos eles ficaram estáticos – as duas meninas e os dois monstros.
Annabeth estudou a outra garota no extremo oposto do vagão, tentando avaliar o seu nível de ameaça.
A recém-chegada usava calças de linho branco e uma blusa correspondente, como uma espécie de uniforme de karatê. Seus coturnos com ponta de aço pareciam poder causar danos em uma luta. Pendurado no ombro esquerdo estava uma mochila de nylon azul com um pedaço de marfim curvo – um bumerangue? – pendurado na alça. Mas a arma mais intimidante da menina era seu bastão de madeira branca – cerca de cinco metros de comprimento, esculpido com a cabeça de uma águia, todo o comprimento brilhando como bronze celestial.
Annabeth olhou nos olhos da menina, e uma sensação de déjà vu a embalou.
A Garota Karatê não poderia ter mais que treze anos. Seus olhos eram de um azul brilhante, como uma filha de Zeus. Seu longo cabelo loiro tinha mechas roxas. Ela se parecia muito com uma filha de Atena – pronta para o combate, rápida, alerta e destemida. Annabeth sentia como se estivesse vendo a si mesma quatro anos atrás, na época em que conheceu Percy Jackson.
Então a Garota Karatê falou e quebrou a ilusão.
— Certo — ela soprou um fio de cabelo roxo do rosto. — Porque o meu dia não estava maluco o suficiente.
Britânica, Annabeth pensou. Mas ela não teve tempo para refletir sobre isso.
O cão-girino e Caran estavam de pé no centro do vagão, a cerca de quinze metros de distância, olhando um para o outro com espanto. Agora eles superaram o choque. O cão uivou – um grito de triunfo que soava como: eu te encontrei! E o leão-lobo-caranguejo pulou para encontrá-lo.
— Pare-os! — Annabeth gritou.
Ela saltou nas costas de Caran, e as patas dianteiras entraram em colapso com o peso extra.
A outra garota gritou algo como: “Mar!”
Uma série de hieróglifos dourados brilhou no ar:



A criatura-cão cambaleou para trás com ânsia de vômito, como se tivesse engolido uma bola de bilhar.
Annabeth se esforçou para manter Caran caído, mas o animal tinha duas vezes seu peso. Ele empurrou-se para cima com as patas dianteiras, tentando jogá-la para o lado. Ambas as cabeças se voltaram para mordê-la.
Felizmente ela tinha controlado bem os pégasos selvagens no Acampamento Meio-Sangue. Ela conseguiu manter o equilíbrio enquanto tirava a mochila. Ela bateu dez quilos de livros de arquitetura na cabeça do leão, então passou a alça no pescoço do lobo e puxou para trás.
Enquanto isso, o trem voltou para a luz do dia. Ele sacudiu ao longo dos trilhos elevados do Queens, ar fresco soprando através das janelas quebradas e pedaços de vidro refletindo em todos os lugares.
Com o canto do olho, Annabeth viu o cão preto parar de tentar vomitar. Ele investiu contra a Garota Karatê, que sacou seu bumerangue de marfim e atingiu o monstro com outro flash dourado.
Annabeth desejou que ela pudesse invocar flashes dourados. Tudo o que tinha era uma mochila estúpida. Ela fez o seu melhor para subjugar Caran, mas o monstro parecia ficar mais forte a cada segundo, enquanto a aura da coisa vermelha enfraquecia Annabeth. Ela sentia a cabeça cheia de algodão. Seu estômago revirou.
Ela perdeu a noção do tempo enquanto lutava contra a criatura. Só sabia que não podia deixá-la combinar com aquela coisa com cabeça de cão. Se o monstro de três cabeças se completasse, seja lá o que fosse, seria impossível pará-la.
O cão atacou novamente a Garota Karatê. Desta vez, ele a derrubou. Annabeth, distraída, perdeu o controle sobre o monstro caranguejo, que a derrubou no chão e a fez bater a cabeça na quina de um banco.
Seus ouvidos zumbiam enquanto a criatura rugiu em triunfo. Uma onda de energia vermelha percorreu o vagão. O trem cambaleou para os lados, e Annabeth se sentiu leve.


— Levante-se, vamos — disse uma voz feminina. — Temos que ir.
Annabeth abriu os olhos. O mundo estava girando. Sirenes de emergência gritava à distância.
Ela estava deitada de costas em algumas ervas daninhas espinhosas. A menina loura do trem inclinava-se sobre ela, puxando seu braço.
Annabeth conseguiu se sentar. Parecia que alguém esteve martelando pregos quentes em sua caixa torácica. Quando sua visão clareou, ela percebeu que tinha sorte de estar viva. A cerca de cinquenta metros de distância, o trem do metrô descarrilhara. Os vagões estavam de lado em um ziguezague quebrado, com destroços fumegantes que lembrou a Annabeth uma carcaça de drakon, (infelizmente, ela tinha visto várias deles).
Ela não viu nenhum mortal ferido. Esperançosamente, todos tinham escapado do trem na estação de Fulton Street. Mas ainda assim – aquilo era um desastre.
Annabeth reconheceu onde estava: Rockaway Beach. A algumas centenas de metros para a esquerda, terrenos baldios e cercas de arame davam lugar a uma praia de areia amarela pontilhada com alcatrão e lixo. O mar agitava-se sob um céu nublado. À direita de Annabeth, após os trilhos do trem, havia uma fileira de torres de apartamentos tão gastos que se poderia pensar que os edifícios eram formados a partir de velhas caixas de geladeira.
— Eei — a Garota Karatê sacudiu seu ombro. — Eu sei que você provavelmente está em estado de choque, mas precisamos ir. Não gostaria de ser interrogada pela polícia com essa coisa a reboque.
A menina acenou para a esquerda. Atrás dela, no asfalto quebrado, o Labrador monstro negro estava caído como um peixe fora d’água, o focinho e as patas presos por corda dourada brilhante.
Annabeth olhou para a menina mais nova. Em volta de seu pescoço brilhava uma corrente com um amuleto de prata – um símbolo como um ankh egípcio cruzado com um biscoito em formato de homem.



Ao seu lado estava seu bastão e o bumerangue de marfim – ambos esculpidos com hieróglifos e imagens estranhas, monstros muito não-gregos.
— Quem é você? — Annabeth demandou.
Um sorriso apareceu no canto da boca da menina.
— Normalmente eu não dou meu nome a estranhos. Vulnerabilidades mágicas e tudo mais. Mas tenho que respeitar alguém que luta contra um monstro de duas cabeças com nada além de uma mochila — ela ofereceu a mão. — Sadie Kane.
— Annabeth Chase.
Eles se cumprimentaram.
— Prazer em conhecê-la, Annabeth — disse Sadie. — Agora, vamos levar nosso cachorro para passear, sim?


Elas saíram bem na hora.
Em poucos minutos, os veículos de emergência cercaram o trem acidentado, e uma multidão de espectadores saiu dos prédios próximos.
Annabeth se sentia mais enjoada do que nunca. Manchas vermelhas dançavam diante de seus olhos, mas ela ajudou Sadie arrastar a criatura-cão pelo rabo para longe nas dunas de areia. Sadie parecia ter prazer em puxar o monstro sobre todas pedras e garrafas quebradas que poderia encontrar.
O animal rosnou e se contorceu. Sua aura vermelha brilhava mais intensamente enquanto a corda dourada esmaecia.
Normalmente Annabeth gostava de andar na praia. O oceano a lembrava de Percy. Mas hoje ela estava com fome e exausta. Sua mochila parecia mais pesada a cada momento, e a magia da criatura-cão a fazia querer vomitar.
Além disso, Rockaway Beach era um lugar sombrio. Um furacão enorme passara ali mais de um ano atrás, e os danos ainda eram evidentes. Alguns dos prédios de apartamentos ao longe foram reduzidos a carcaças, suas janelas com tábuas e paredes de blocos de cimento cobertas de pichações. Madeira podre, pedaços de asfalto e metal retorcido enchiam a praia. O pilar de um cais destruído projetava-se para fora da água. O próprio mar desgastava pouco a pouco a costa, como se dissesse, Não me ignore. Eu sempre posso voltar e terminar o trabalho.
Finalmente chegaram a um caminhão abandonado de sorvete meio submersa nas dunas. Na lateral, imagens desbotadas de delícias há muito perdidas fizeram o estômago de Annabeth uivar em protesto.
— Tenho que parar — ela murmurou.
Ela deixou cair o monstro-cão e cambaleou até o caminhão, então deslizou para baixo com as costas apoiadas na porta do passageiro.
Sadie sentou de pernas cruzadas de frente para ela. Ela remexeu em sua própria bolsa e tirou um frasco de cerâmica com tampa de cortiça.
— Aqui — ela entregou a Annabeth. — É gostoso. Beba.
Annabeth estudou o frasco com cautela. Era pesado e quente, como se fosse cheia de café quente.
— Uh... isso não vai fazer flashes de ouro explodirem em meu rosto, vai?
Sadie bufou.
— É só uma poção de cura, sua boba. Uma amiga minha, Jaz, fabrica as melhores do mundo.
Annabeth ainda hesitou. Ela já tinha provado poções antes, fabricadas pelos filhos de Hécate. Normalmente tinham gosto de água suja, mas pelo menos eram feitas para surtir efeito em semideuses. O que quer que estivesse nesse frasco, definitivamente não era para ela.
— Eu não tenho certeza se eu deveria tentar — respondeu ela. — Eu... eu não sou como você.
— Ninguém é como eu — Sadie concordou — minha extraordinariedade é única. Mas se você quer dizer que você não é uma maga, bem, posso ver isso. Normalmente nós lutamos com cajado e varinha — ela deu um tapinha no bastão branco esculpido e no bumerangue de marfim descansando ao lado dela. — Ainda assim, acho que minhas poções devem funcionar em você. Você lutou contra um monstro. Sobreviveu que acidente de trem. Você não pode ser normal.
Annabeth riu fracamente. Ela encontrou nessa garota imprudente algo revigorante.
— Não, eu definitivamente não sou normal. Eu sou uma semideusa.
— Ah — Sadie bateu os dedos sobre sua varinha curva. — Desculpe, isso é uma novidade para mim. Uma sem deusa?
— Semideusa — Annabeth corrigiu. — Metade deusa, metade mortal.
— Ah, certo — Sadie exalou, claramente aliviada. — Eu tenho hospedado Ísis em minha cabeça algumas vezes. Quem é o seu amigo especial?
— Meu... não. Eu não hospedo ninguém. Minha mãe é uma deusa grega, Atena.
— Sua mãe.
— Sim.
— Uma deusa. Uma deusa grega.
— Sim — Annabeth notou que sua nova amiga tinha ficado pálida. — Acho que você não tem esse tipo de coisa, hã, de onde você vem.
— No Brooklyn? — Sadie meditou. — Não. Acho que não. Ou Londres. Ou Los Angeles. Não me lembro de conhecer semideuses gregos em qualquer um desses lugares. Ainda assim, quando se tem lidado com babuínos mágicos, deusas-gatas e anões de sunga não se pode ser surpreendido com muita facilidade.
Annabeth não tinha certeza se tinha ouvido direito.
— Anões de sunga?
— Hmm — Sadie olhou para o monstro-cão, ainda se contorcendo em sua prisão de ouro. — Mas aqui está a coisa. Há alguns meses, minha mãe me deu um aviso. Ela me disse para ter cuidado com outros deuses e outros tipos de magia.
O frasco nas mãos de Annabeth parecia ficar mais quente.
— Outros deuses. Você mencionou Ísis. Ela é a deusa egípcia da magia. Mas... Ela não é sua mãe?
— Não — disse Sadie. — Quero dizer, sim. Ísis é a deusa egípcia da magia. Mas ela não é minha mãe. Minha mãe é um fantasma. Bem... Ela era uma maga na Casa da Vida, como eu, mas depois ela morreu, por isso...
— Só um segundo.
A cabeça de Annabeth latejava tanto que ela percebeu que nada poderia piorar a situação. Ela desarrolhou a poção e bebeu.
Ela estava esperando o gosto de água suja, mas na verdade veio o sabor de suco de maçã quente. Instantaneamente, sua visão clareou. Seu estômago acalmou-se.
— Uau.
— Eu te disse — Sadie sorriu. — Jaz é como uma curandeira.
— Então, você estava dizendo... a Casa da Vida. Magia egípcia. Você é como o garoto que meu namorado conheceu.
O sorriso de Sadie sumiu.
— Seu namorado... encontrou alguém como eu? Outro mago?
A poucos metros de distância, a criatura-cão rosnou e se esforçou. Sadie não pareceu interessada, mas Annabeth estava preocupado sobre como quão fracamente a corda mágica estava brilhando agora.
— Isso foi há algumas semanas — disse Annabeth. — Percy me contou uma história maluca sobre o encontro com um menino perto de Moriches Bay. Aparentemente, o garoto usou hieróglifos para lançar feitiços. Ele ajudou Percy a combater um grande monstro crocodilo.
— O Filho de Sobek! — Sadie desabafou. — Mas meu irmão lutou contra esse monstro. Ele não disse nada a respeito...
— O nome do seu é irmão Carter? — Perguntou Annabeth.
Uma aura dourada de raiva cintilou na cabeça de Sadie – um halo de hieróglifos que se assemelhavam carrancas, punhos e homens sendo mortos vara.
— A partir deste momento — Sadie resmungou — o nome do meu irmão é Saco de Pancadas. Parece que ele não está me contando tudo.
— Ah — Annabeth teve que lutar contra o impulso de fugir para longe de sua nova amiga. Ela temia que esses hieróglifos brilhantes pudessem explodir de raiva. — Que embaraçoso. Sinto muito.
— Não sinta — disse Sadie. — Vou desfrutar muito socando o rosto do meu irmão mais fundo. Mas primeiro me conte tudo – sobre si mesma, semideuses, gregos e seja lá o que tenha a ver com o nosso amigo canino do mal aqui.
Annabeth contou a ela tudo o que podia.
Normalmente ela não era tão rápida para confiar, mas tinha muita experiência na leitura de pessoas. Ela gostou de Sadie imediatamente: os coturnos, as mechas roxas, a atitude... Na experiência de Annabeth, as pessoas não confiáveis ​​não eram tão explícitas no desejo de socar o rosto de alguém mais fundo. Eles certamente não ajudariam um estranho inconsciente e ofereceriam uma poção de cura.
Annabeth descreveu o Acampamento Meio-Sangue. Ela contou algumas de suas aventuras lutando contra os deuses, gigantes e Titãs. Explicou como viu o leão-lobo-caranguejo de duas cabeças na estação de West Fourth Street e decidiu segui-lo.
— Então, aqui estou eu — Annabeth resumiu.
A boca de Sadie tremeu. Parecia que a qualquer momento ela começaria a gritar ou chorar. Em vez disso, ela caiu em um ataque de risos.
Annabeth fez uma careta.
— Eu disse algo engraçado?
— Não, não... — Sadie bufou. — Bem... É um pouco engraçado. Quero dizer, estamos sentadas na praia conversando sobre deuses gregos. E um acampamento para semideuses, e...
— É tudo verdade!
— Oh, eu acredito em você. É ridículo demais para não ser verdade. É que a cada vez que o meu mundo fica estranho, eu penso: Certo. Estamos com a estranheza máxima agora. Pelo menos eu sei a extensão disso. Primeiro eu descubro que eu e meu irmão somos descendentes dos faraós e temos poderes mágicos. Tudo bem. Sem problemas. Então descubro que o meu pai morto fundiu sua alma com Osíris e se tornou o senhor dos mortos. Brilhante! Por que não? Então meu tio assume a Casa da Vida e supervisiona centenas de magos em todo o mundo. Aí meu namorado acaba por ser um híbrido de mago e deus imortal dos funerais. E o tempo todo eu estou pensando, É claro! Mantenha a calma e siga em frente! Eu me acostumo! E então você vem em uma quinta-feira aleatória, ta-dá: Oh, a propósito, deuses egípcios são apenas uma pequena parte do absurdo cósmico. Nós também temos os gregos com que nos preocupar! Êee!
Annabeth não conseguiu acompanhar tudo o que Sadie havia dito – um deus dos funerais como namorado? – Mas ela teve que admitir que rir sobre isso era mais saudável do que se enrolar em uma bola e soluçar.
— Ok — ela admitiu. — Tudo isso soa um pouco louco, mas acho que faz sentido. Meu professor Quíron... Há anos que ele está me dizendo que os antigos deuses são imortais, porque eles são parte do tecido da civilização. Se deuses gregos ficaram por aí durante esses milênios, por que não os egípcios?
— Quanto mais, melhor — Sadie concordou. — Mas, hã, e sobre este pequeno cachorrinho? — Ela pegou uma pequena concha e atirou-a na cabeça do monstro Labrador, que rosnou em irritação. — Num minuto ele está sentado em cima da mesa em nossa biblioteca – um artefato inofensivo, um fragmento de pedra de uma estátua, nós pensamos. No minuto seguinte, vem à vida e foge da Casa do Brooklyn. Ele destrói nossas proteções mágicas, atropela os pinguins de Felix e dá de ombros para os meus feitiços como se eles não fossem nada.
— Pinguins? — Annabeth balançou a cabeça. — Não. Esqueça que eu perguntei.
Ela estudou a criatura-cão enquanto ela tentava se desvencilhar das amarras. Letras gregas e hieróglifos vermelhos giravam em torno da criatura como se estivesse tentando formar novos símbolos – uma mensagem que Annabeth quase podia ler.
— Será que essas cordas aguentam? — Ela perguntou. — Parecem estar enfraquecendo.
— Não se preocupe — Sadie assegurou. — Essas cordas mantiveram deuses presos. E não pequenos deuses, tenha em mente. Extragrandes.
— Hum, tudo bem. Então, você disse que o cão era parte de uma estátua. Alguma ideia de que estátua?
— Nenhuma — Sadie encolheu os ombros. — Cleo, nossa bibliotecária, estava pesquisando sobre isso quando o Fido aqui acordou.
— Mas tem que estar ligado ao outro monstro – o de cabeças de leão e lobo. Tenho a impressão de que ele tinha acabado de ganhar vida, também. Tinham fundido e não estavam acostumados a trabalhar em equipe. Eles pegaram esse trem em busca de algo – provavelmente este cão.
Sadie brincava com seu pingente de prata.
— Um monstro com três cabeças: uma de leão, de lobo e de cão. Todos saindo do... O que era aquela coisa cônica? Uma concha? Uma tocha?
A cabeça de Annabeth começou a girar novamente. Uma tocha.
A palavra acendeu uma memória distante – talvez uma imagem que ela tenha visto em um livro. Ela não tinha considerado que a concha do monstro poderia ser algo que você pudesse segurar se tivesse uma mão enorme. Mas uma tocha não era o termo...
— É um cetro — ela percebeu. — Eu não me lembro qual deus o segurava, mas o cajado de três cabeças era o seu símbolo. Ele era... Grego, eu acho, mas também era de algum lugar no Egito...
— Alexandria — Sadie adivinhou.
Annabeth olhou para ela.
— Como você sabe?
— Bem, é verdade, eu não uma fanática por história como o meu irmão, mas eu fui para Alexandria. Lembro-me de algo sobre a cidade ser a capital quando os gregos governaram o Egito. Alexandre, o Grande, não é?
Annabeth assentiu.
— Correto. Alexandre conquistou o Egito e, depois que ele morreu, seu general Ptolomeu assumiu. Ele queria que os egípcios o aceitassem como seu faraó, então misturou os deuses egípcios e gregos e fez novas divindades.
— Parece confuso — disse Sadie. — Eu prefiro meus deuses não misturados.
— Mas houve um deus em particular... Não me lembro do nome dele. A criatura de três cabeças ficava no topo de seu cetro...
— Devia ser um cetro bem longo — Sadie observou. — Eu não imagino um cara tão grande que poderia levá-lo por aí.
— Oh, deuses — Annabeth levantou-se. — É isso! O cajado não está apenas tentando se remontar – está tentando encontrar o seu mestre.
Sadie fez uma careta.
— Eu não sou a favor de tudo isso. Precisamos ter a certeza...
O monstro-cão uivou. A corda mágica explodiu como uma granada, pulverizando a praia com estilhaços de ouro.


A explosão empurrou Sadie para trás das dunas como se ela não tivesse peso.
Annabeth bateu com força contra o caminhão de sorvete. A dor atingiu primeiro seu ombro. Todo o ar foi forçado a sair de seus pulmões.
Se a criatura-cão quisesse matá-la, poderia ter feito isso facilmente.
Em vez disso, o monstro saltou para o outro lado, desaparecendo no mato.
Annabeth instintivamente pegou uma arma. Seus dedos se fecharam em volta da varinha curva de Sadie. A dor a fez ofegar. O marfim queimava como gelo seco. Annabeth tentou soltar, mas sua mão não obedecia. Enquanto ela a observava, a varinha foi envolta por fumaça, mudando de forma até que a queimação diminuiu e Annabeth segurasse uma adaga de bronze celestial – assim como a que ela utilizara durante anos.
Ela olhou para a lâmina. Então ouviu gemidos das dunas próximas.
— Sadie! — Annabeth cambaleou de pé.
No momento em que ela chegou à maga, Sadie estava sentada, cuspindo areia. Ela tinha pedaços de algas no cabelo, e a bolsa estava enrolada em volta uma de suas botas, mas ela parecia mais indignada do que ferida.
— Fido estúpido! — Ela rosnou. — Nada de biscoitos de cachorro para ele! — Ela franziu o cenho para a faca de Annabeth. — Onde você conseguiu isso?
— Hum... É a sua varinha — disse Annabeth. — Eu a peguei e... não sei. Ela simplesmente mudou para o tipo de punhal que eu costumo usar.
— Uh. Bem, itens mágicos têm uma mente própria. Fique com ela. Eu tenho mais em casa. Agora, para que lado Fido foi?
— Para lá — Annabeth apontou com sua nova lâmina.
Sadie olhou para onde Annabeth apontava. Seus olhos se arregalaram.
— Ah... Certo. Rumo à tempestade. Isso é novo.
Annabeth seguiu seu olhar. Passando os trilhos do metrô, não viu nada, exceto um edifício de apartamentos abandonado, cercado e abandonado contra o céu da tarde.
— Que tempestade?
— Você não vê? — Perguntou Sadie. — Espere um pouco.
Ela desembaraçou a bolsa de sua bota e vasculhou seus suprimentos. Puxou outro frasco de cerâmica, este curto e largo como um pote de creme para o rosto. Ela tirou a tampa e pegou um pouco de uma gosma rosa.
— Deixe-me passar isto em suas pálpebras.
— Uau, isso merece um não automático.
— Não seja enjoada. É perfeitamente inofensivo... Bem, para magos. Provavelmente para semideuses, também.
Annabeth não foi tranquilizada, mas fechou os olhos. Sadie esfregou a gosma em seus olhos, que formigou e esquentou.
— Certo — disse Sadie. — Você pode olhar agora.
Annabeth abriu os olhos e suspirou.
O mundo estava inundado de cor. O chão tinha virado translúcido – camadas gelatinosas desciam para a escuridão abaixo. O ar ondulava com véus brilhantes e vibrantes, mas um pouco fora de sincronia, como se vários vídeos de alta definição estivessem sobrepostos um sobre o outro. Hieróglifos e letras gregas giravam em torno dela, fundindo e explodindo enquanto colidiam. Annabeth sentiu como se estivesse vendo o mundo em nível atômico. Todo o invisível tinha sido revelado, pintado com luz mágica.
— Você enxerga assim o tempo todo?
Sadie bufou.
— Deuses do Egito, não! Isso me deixaria maluca. Tenho que me concentrar para ver o Duat. Isso é o que você está fazendo – vendo o lado mágico do mundo.
— Eu... — Annabeth vacilou.
Annabeth era geralmente uma pessoa confiante. Sempre que ela lidava com os mortais comuns, carregava uma certeza presunçosa de que ela possuía um conhecimento secreto. Ela entendia o mundo dos deuses e monstros, os mortais não tinham a menor ideia. Mesmo com outros semideuses, Annabeth quase sempre era a veterana mais experiente. Ela tinha feito mais do que a maioria dos heróis nunca tinha sonhado, e sobrevivido.
Agora, olhando para as cortinas de cores em movimento, Annabeth se sentiu como uma criança de seis anos de idade mais uma vez, apenas aprendendo quão terrível e perigoso o mundo dela realmente era.
Ela sentou-se com força na areia.
— Eu não sei o que pensar.
— Não pense — Sadie aconselhou. — Respire. Seus olhos vão se ajustar. É um pouco como a natação. Se você deixar seu corpo assumir, saberá o que fazer instintivamente. Entre em pânico, e você se afogará.
Annabeth tentou relaxar.
Ela começou a discernir padrões no ar: correntes que fluíam entre as camadas de realidade, trilhas de névoa de magia, de carros e edifícios. O local do acidente de trem brilhava verde. Sadie tinha uma aura dourada com plumas enevoadas espalhadas por trás dela como asas.
No lugar em que o monstro-cão estivera deitado, o chão ardia em brasas. Gavinhas carmesim serpenteavam para longe do local, seguindo na direção em que o monstro tinha fugido.
Annabeth focou no prédio abandonado à distância, e seu batimento cardíaco dobrou. A torre brilhava vermelha por dentro – a luz penetrando através das janelas com tábuas, disparando através de rachaduras nas paredes em ruínas. Nuvens escuras rodopiavam no alto, e mais gavinhas de energia vermelha fluíam para a construção de todo o cenário, como se estivessem sendo arrastadas para o turbilhão.
A cena lembrou Annabeth de Caríbdis, o monstro vórtice-sugador que encontrara no Mar de Monstros. Não era uma memória feliz.
— Aquele prédio — disse ela. — Ele está atraindo a luz vermelha de todo lugar.
— Exatamente — disse Sadie. — Na magia egípcia, o vermelho é ruim. Significa o mal e o caos.
— Então é para lá que o monstro-cão está se dirigindo — Annabeth adivinhou. — Para se fundir com a outra parte do cetro...
— E encontrar seu mestre, aposto.
Annabeth sabia que deveria se levantar. Eles tinham que se apressar. Mas, olhando para as camadas de magia que giravam, ela estava com medo de se mover.
Ela passou toda a sua vida aprendendo sobre a névoa – a fronteira mágica que separava o mundo dos mortais do mundo de monstros e deuses gregos. Mas nunca tinha pensado na Névoa como uma cortina real.
Como Sadie chamara – o Duat?
Annabeth se perguntou se a Névoa e o Duat tinham relação, ou talvez fossem a mesma coisa. O número de véus que ela podia ver era esmagador – como uma tapeçaria dobrada sobre si mesma uma centena de vezes.
Ela não confiava em si mesma para ficar. Entre em pânico, e você se afogará.
Sadie ofereceu sua mão. Seus olhos estavam cheios de simpatia.
— Olha, eu sei que é muito, mas nada mudou. Você ainda é a mesma semideusa casca dura empunhadora de mochilas que sempre foi. E agora tem uma bela adaga também.
Annabeth sentiu o sangue subir ao rosto. Normalmente ela era a pessoa que dava discursos animadores.
— Sim. Sim, é claro — ela aceitou a mão de Sadie. — Vamos encontrar um deus.


Uma cerca de arame cercava o prédio, mas elas se espremeram por uma abertura e caminharam até a construção através de mato e concreto quebrado.
O efeito da gosma encantada nos olhos de Annabeth parecia estar passando. O mundo já não parecia tão multifacetado e caleidoscópico, o que ela achava bom. Não precisava de visão especial para perceber que a torre estava cheio de magia ruim.
De perto, o brilho vermelho nas janelas estava ainda mais radiante. As tábuas se agitavam. As paredes de tijolo gemiam. Aves hieroglíficas e figuras formadas no ar flutuaram lá dentro. Mesmo a pichação parecia vibrar nas paredes, como se os símbolos estivessem tentando ganhar vida.
Seja lá o que estivesse dentro do edifício, o seu poder puxava Annabeth também, da mesma forma que o Caran no trem.
Ela agarrou sua nova faca de bronze, percebendo que era pequena e curta demais para fornecer poder ofensivo. Mas era por isso que Annabeth gostava de punhais: eles mantinham seu foco. Uma criança de Atena nunca deve confiar em uma lâmina se pode usar sua inteligência em seu lugar. Inteligência venceu guerras, não a força bruta.
Infelizmente, a mente de Annabeth não estava funcionando muito bem no momento.
— Gostaria de saber com o que estamos lidando — ela murmurou enquanto seguiam na direção do prédio. — Eu gosto de pesquisar antes – armar-me com conhecimento.
Sadie resmungou.
— Você soa como meu irmão. Diga-me, quantas vezes os monstros lhe deram o luxo de pesquisá-los antes de atacar?
— Nenhuma vez — Annabeth admitiu.
— Bem, aí está você. Carter – ele gostaria de passar horas na biblioteca lendo sobre cada demônio hostil que pudesse enfrentar, com destaque nos trechos importantes e confecção de cartões rápidos para eu estudar. Infelizmente, quando os demônios atacam, eles não nos dão qualquer aviso, e raramente se preocupam em se identificar.
— Então qual é o seu procedimento operacional padrão?
— Avançar — respondeu Sadie. — Pense com meus pés. Quando necessário, explodir o inimigo em pequenos pedaços.
— Ótimo. Você se daria bem com os meus amigos.
— Vou levar isso como um elogio. Aquela porta, concorda?
Um conjunto de degraus levava a uma entrada do porão. Uma única tábua fora pregada na porta em uma tentativa tímida para impedir a entrada de invasores, mas a porta em sai estava entreaberta.
Annabeth estava prestes a sugerir estudar o perímetro. Ela não confiava em um caminho tão fácil, mas Sadie não esperou. A jovem maga desceu rapidamente os degraus e entrou.
A única opção de Annabeth era segui-la.


Como comprovado, se elas entrassem através de qualquer outra porta, teriam morrido.
Todo o interior do edifício era uma concha cavernosa, com trinta andares de altura, um turbilhão de tijolos, tubos, placas e outros detritos rodando, juntamente com símbolos gregos e hieróglifos brilhantes e tufos de energia vermelha néon. A cena era ao mesmo tempo terrível e bela – como se um tornado tivesse sido capturado, iluminado por dentro e colocado em exposição permanente.
Uma vez que tinham entrado pelo subsolo, Sadie e Annabeth estavam protegidas em uma escadaria rasa – uma espécie de trincheira no concreto. Se tivessem entrado na tempestade ao nível do solo, já teriam sido rasgadas em pedaços.
Enquanto Annabeth olhava, uma viga de aço trançado voou a uma velocidade de carro de corrida. Dezenas de tijolos aceleraram como um cardume de peixes. Um hieróglifo vermelho ardente bateu em uma folha de madeira compensada, que inflamou-se como papel de seda.
— Lá em cima — Sadie sussurrou.
Ela apontou para o topo do edifício, onde parte do trigésimo andar ainda estava intacto – uma borda em ruínas que se projeta no vazio. Era difícil ver através dos escombros que giravam e da névoa vermelha, mas Annabeth podia discernir uma volumosa forma humanoide de pé à beira do precipício, os braços abertos como se para acolher a tempestade.
— O que ele está fazendo? — Sadie murmurou.
Annabeth se encolheu quando uma hélice de tubos de cobre passou alguns centímetros acima de sua cabeça. Ela olhou para os escombros e começou a notar padrões usando o Duat: um redemoinho de tábuas e pregos que se juntavam para formar uma estrutura, um conjunto de tijolos como Lego se montando para fazer um arco.
— Ele está construindo algo — ela percebeu.
— Construindo o que, um desastre? — Perguntou Sadie. — Este lugar me lembra do Mar do Caos. E, acredite em mim, não era o meu local de férias preferido.
Annabeth olhou em volta. Ela se perguntou se Caos significava a mesma coisa para os egípcios como para os gregos. Annabeth teve sua própria experiência com o Caos, e se Sadie estivesse lá, também... Bem, a maga deveria ser ainda mais dura do que parecia.
— A tempestade não é completamente aleatória — disse Annabeth. — Veja aqui? E ali? partes de material estão se unindo, formando uma espécie de estrutura dentro do edifício.
Sadie franziu a testa.
— Parece tijolos em um liquidificador para mim.
Annabeth não tinha certeza de como explicar isso, mas ela estudou arquitetura e engenharia por tempo suficiente para reconhecer os detalhes. A tubulação de cobre se conectava como artérias e veias de um sistema circulatório. Seções de paredes velhas estavam montando-se entre si para formar um novo quebra-cabeça. De vez em quando, mais tijolos ou vigas eram descascadas as paredes exteriores para participar do tornado.
— Ele está remontando o edifício — disse ela. — Eu não sei por quanto tempo as paredes exteriores vão durar.
Sadie xingou em voz baixa.
— Por favor, me diga que ele não está construindo uma pirâmide. Tudo menos isso.
Annabeth se perguntou por que um mago egípcio odiaria pirâmides, mas ela balançou a cabeça.
— Acho que é uma espécie de torre cônica. Só há uma maneira de saber com certeza.
— Perguntando ao construtor — Sadie olhou para o resto do trigésimo andar.
O homem no parapeito não se moveu, mas Annabeth poderia jurar que ele tinha ficado maior. A luz vermelha girava em torno dele. Na silhueta, parecia que ele estava usando uma cartola angular alto à lá Abe Lincoln.
Sadie tirou a bolsa do ombro.
— Então, se esse é o nosso deus misterioso, onde está o...
Logo em seguida, um uivo de três partes ecoou. No extremo oposto do edifício, um conjunto de portas de metal se abriu e o monstro-caranguejo entrou.
Infelizmente, a besta agora tinha três cabeças – lobo, leão e cão. Sua concha espiral longa brilhava com inscrições gregas e hieroglíficas. Ignorando completamente os detritos voando, o monstro ergueu-se em suas seis patas, em seguida, saltou no ar. A tempestade levou-o para cima, em espiral através do caos.
— Ele está indo para o seu dono — disse Annabeth. — Temos que impedir.
— Encantador — Sadie resmungou. — Isso vai me drenar.
— Vai o quê?
Sadie levantou seu cajado.
— N’dah.
Um hieróglifo dourado brilhou no ar acima delas:



E de repente elas foram cercados em uma esfera de luz.
A espinha de Annabeth formigava. Ela estava envolta em uma bolha protetora assim como aconteceu uma vez, quando ela, Percy e Grover tinham usado as pérolas mágicas para escapar do Mundo Inferior. A experiência tinha sido... Claustrofóbica.
— Isso vai nos proteger da tempestade? — Ela perguntou.
— Espero que sim — o rosto de Sadie estava agora coberto de suor. — Vamos.
Ela liderou o caminho até os degraus.
Imediatamente, seu escudo foi colocado à prova. A bancada de cozinha voadora teria decapitado as duas, mas quebrou contra campo de força de Sadie. Pedaços de mármore voaram para os lados sem causar-lhes danos.
— Brilhante — disse Sadie. — Agora, segure o cajado enquanto eu me transformo em um pássaro.
— Espere. O quê?
Sadie revirou os olhos.
— Nós estamos pensando com nossos pés, lembra? Eu vou voar até lá e parar o monstro do cajado. Você tenta distrair esse deus... seja ele quem for. Chamar sua atenção.
— Tudo bem, mas eu não sou nenhuma maga. Não posso manter um feitiço.
— O escudo vai segurar por alguns minutos, enquanto você usa o cajado.
— Mas o que acontece com você? Se você não estiver dentro do escudo...
— Eu tenho uma ideia. Pode até funcionar.
Sadie puxou algo de sua bolsa – uma pequena estatueta de animal. Ela fechou os dedos em volta dele, em seguida, começou a mudar de forma.
Annabeth tinha visto pessoas se transformarem em animais antes, mas assistir nunca ficou mais fácil. Sadie encolheu para um décimo do seu tamanho. Seu nariz alongou em um bico. Seus cabelos, roupas e bolsa se fundiram num elegante casaco de penas. Ela tornou-se uma pequena ave de rapina – um milhano, talvez – seus olhos azuis agora dourado brilhantes. Com a pequena estatueta que segurava ainda nas garras, Sadie abriu as asas e lançou-se para a tempestade.
Annabeth se encolheu quando um conjunto de tijolos chocou contra sua amiga – mas de alguma forma os detritos continuaram seu caminho sem transformar Sadie em purê de penas. A forma de Sadie apenas brilhava como se estivesse viajando em uma camada profunda de água.
Sadie estava no Duat, Annabeth percebeu – voando em um nível diferente da realidade.
A ideia fez a mente de Annabeth aquecer com possibilidades. Se um semideus pudesse aprender a atravessar paredes assim, correr em linha reta através de monstros...
Mas isso era uma conversa para outro momento. Agora ela precisava se mover. Ela subiu os degraus e o turbilhão. Barras de metal e tubos de cobre ressoaram contra o seu campo de força. A esfera dourada brilhava um pouco menos a cada vez que desviava detritos.
Ela segurava o cajado de Sadie com uma mão e seu novo punhal com a outra. Na torrente mágica, a lâmina de bronze celestial refletia a luz como uma tocha esmorecendo.
— Ei! — Ela gritou para a borda muito acima. — Sr. Deus!
Sem resposta. A voz dela provavelmente não ultrapassava a tempestade.
A estrutura do edifício começou a gemer. Argamassa escorria das paredes e rodava na mistura como tufos de algodão doce.
Sadie a falcoa ainda estava viva, voando para o monstro de três cabeças em uma espiral ascendente.  A besta estava na metade do caminho para o topo agora, agitando as pernas e brilhando cada vez mais intensamente, como se estivesse absorvendo poder do tornado.
Annabeth estava ficando sem tempo.
Ela buscou na memória os contos mais obscuros que Quíron contava a ela no acampamento. Quando era mais nova, era como uma esponja, absorvendo cada fato e nome.
O cajado de três cabeças.  O deus de Alexandria, no Egito.
O nome do deus veio a ela.  Pelo menos ela esperava estar certa.
Uma das primeiras lições que ela aprendeu como uma semideusa: nomes têm poder.  Você nunca diz o nome de um deus ou monstro a menos que esteja preparado para chamar sua atenção.
Annabeth respirou fundo. Ela gritou com tudo que seus pulmões permitiam:
 — SERÁPIS!
A tempestade diminuiu.  Enormes partes de tubo pairaram no ar.  Nuvens de tijolos e madeira congelaram e flutuaram.
Com calmaria no meio do tornado, o monstro de três cabeças tentou continuar subindo.  Sadie voou acima dele, abriu suas garras e deixou cair a estatueta, que cresceu instantaneamente até virar um camelo em tamanho real.
O camelo desgrenhado bateu nas costas do monstro. Ambas as criaturas saíram do ar e caíram no chão em um emaranhado de pernas e cabeças. O cajado monstro continuou a lutar, mas o camelo estava em cima dele com as pernas abertas, berrando e cuspindo e, basicamente, ficando mole como uma criança de uma tonelada fazendo birra.
A partir da borda trigésimo andar, uma voz de homem explodiu:
— QUEM OUSA INTERROMPER A MINHA ASCENÇÃO TRIUNFAL?
— Eu! — gritou Annabeth. — Desça aqui e me enfrente!
Ela não gostava de tomar crédito de camelos de outras pessoas, mas queria manter o deus focado em si, então Sadie poderia fazer... o que quer que tenha decidido decidiu fazer. A jovem maga claramente tinha alguns bons truques na manga.
O deus Serápis saltou da borda. Ele pulou de trinta andares e caiu em pé no meio do térreo, onde Annabeth poderia atingi-lo facilmente atirando a adaga.
Não que ela não estivesse tentando atacar.
Serápis tinha quatro metros e meio de altura. Usava apenas um par de calções de banho em um padrão floral havaiano. Seu corpo era ondulado com músculos. Sua pele cor de bronze estava coberta de tatuagens cintilantes de hieróglifos, letras gregas e outros idiomas que Annabeth não reconheceu.
Seu rosto era emoldurado por longos com dreadlocks rastafári. Uma barba grega encaracolada crescia até a clavícula. Seus olhos eram verdes mar – tão parecidos com os de Percy que Annabeth teve arrepios.
Normalmente ela não gostava de caras barbudos ou peludos, mas ela tinha que admitir que este deus era atraente, uma espécie de surfista selvagem mais velho.
Seu chapéu, no entanto, estragava o visual. O que Annabeth tinha tomado por uma cartola era na verdade uma cesta cilíndrica de vime bordada com imagens de amores-perfeitos.
— Desculpe-me — disse ela. — Isso em sua cabeça é um vaso?
Serápis ergueu as espessas sobrancelhas marrons. Ele bateu na cabeça, como se tivesse esquecido a cesta. Algumas sementes de trigo caíram do topo.
— Isso é um modius, menina boba.  É um dos meus símbolos sagrados! A cesta de grãos representa o Mundo Inferior, que eu controlo.
— Uh, é mesmo?
— É claro! — Serápis se iluminou. — Ou controlei, e logo controlarei novamente. Mas quem é você para criticar minhas escolhas de moda? Uma semideusa grega, por seu cheiro, portando uma arma de bronze celestial e um cajado egípcio da Casa da Vida. Qual deles você é? Herói ou mago?
As mãos de Annabeth tremiam. Chapéu de vaso ou não, Serápis irradiava poder. Estando tão perto dele, Annabeth sentia ter apenas água dentro de si, como se seu coração, estômago e coragem fossem todos um só.
Acalme-se, pensou ela. Você conheceu muitos deuses antes.
Mas Serápis era diferente.  Sua presença era fundamentalmente errada – como se simplesmente por estar aqui ele virasse o mundo de Annabeth de dentro para fora.
Vinte metros atrás do deus, Sadie, a ave, pousou e mudou de volta à forma humana. Ela apontou para Annabeth: o dedo nos lábios (shh) e em seguida girou a mão (mantenha-o falando). Ela começou a procurar discretamente em sua bolsa.
Annabeth não tinha ideia do que sua amiga estava planejando, mas ela se forçou a encontrar os olhos de Serápis.
— Quem disse que eu não sou uma maga e uma semideusa? Agora, explique por que você está aqui!
O rosto de Serápis escureceu. Então, para surpresa de Annabeth, ele jogou a cabeça para trás e riu, derramando mais grãos de seu modius.
— Eu vejo! Tentando me impressionar, hein? Você se acha digna de ser minha grande sacerdotisa?
Annabeth engoliu em seco. Havia apenas uma resposta para uma pergunta como essa.
— Claro que eu sou digna! Ora, eu fui uma vez a magna mater do culto de Atena! Mas você é digno do meu serviço?
— HA! — Serápis sorriu. — A grande mãe do culto de Atena, hein? Vamos ver o quão dura você é.
Ele balançou a mão. Uma banheira voou pelo ar, em linha reta contra o campo de força de Annabeth. A porcelana explodiu em estilhaços contra a esfera dourada, mas o cajado de Sadie ficou tão quente que Annabeth teve que soltá-lo.  A madeira branca se reduziu a cinzas.
Ótimo, pensou ela. Dois minutos, e eu já arruinei o cajado de Sadie.
Seu escudo protetor tinha ido embora. Ela enfrentava um deus de quatro metros e meios de altura com apenas suas armas habituais – um pequeno punhal e muita atitude.
À esquerda de Annabeth, o monstro de três cabeças ainda estava lutando para sair de baixo do camelo, mas o animal era pesado, teimoso e fabulosamente descoordenado. Toda vez que o monstro tentava empurrá-lo, o camelo soltava pum com gosto e abria suas pernas ainda mais.
Enquanto isso, Sadie pegara um pedaço de giz de sua bolsa. Ela rabiscou furiosamente no chão de concreto atrás de Serápis, talvez escrevendo um bom epitáfio para a sua morte iminente.
Annabeth lembrou uma citação que seu amigo Frank já havia compartilhado com ela – algo de A Arte da Guerra, de Sun Tzu.
Quando se é fraco, finja-se de forte.
Annabeth ficou ereta e riu na cara de Serápis.
— Jogue todas as coisas que quiser em mim, Lord Serápis.  Eu nem sequer preciso de um cajado para me defender.  Meus poderes são grandes demais! Ou talvez você queira parar de me fazer perder meu tempo e me dizer como posso servi-lo, supondo que eu concorde em me tornar sua nova sacerdotisa.
O rosto do deus brilhou com indignação.
Annabeth tinha certeza de que ele iria deixar cair todo o turbilhão de destroços sobre ela, e não havia nenhuma maneira de detê-lo. Ela considerou jogar sua adaga no olho do deus, da forma como sua amiga Rachel havia distraído o Titã Cronos com a escova de cabelo, mas Annabeth não confiava nesse caso.
Serápis finalmente deu-lhe um sorriso torto.
— Você tem coragem, menina.  Eu vou conceder-lhe isso.  E você foi rápida em me encontrar. Talvez possa servir.  Você será a primeira de muitos que vai me dar seu poder, sua vida, sua própria alma!
— Parece divertido — Annabeth olhou para Sadie, desejando que ela se apressasse com que a arte de giz.
— Mas primeiro — disse Serápis — devo ter o meu cajado!
Ele apontou para o camelo. Um hieróglifo vermelho queimou na pele da criatura, e, com um peido final, o pobre animal se dissolveu em um monte de areia.
O monstro de três cabeças mexeu suas patas dianteiras, sacudindo a areia.
— Espere! — Annabeth gritou.
As três cabeças do monstro rosnaram para ela.
Serápis fez uma careta.
— O que é agora, menina?
— Bem, eu deveria... você sabe, apresentar o cajado a você, como sua sacerdotisa! Devemos fazer as coisas corretamente!
Annabeth se lançou para o monstro. Era pesado demais para ela para carregar, mas ela enfiou a adaga em seu cinto e usou as duas mãos para agarrar o fim da concha cônica da criatura, arrastando-o para trás, para longe do deus.
Enquanto isso, Sadie tinha desenhado um grande círculo do tamanho de um bambolê no concreto. Ela agora estava decorando-o com hieróglifos, usando várias cores diferentes de giz.
Isso mesmo, Annabeth pensou com frustração. Tome seu tempo e deixe tudo bonito!
Ela conseguiu sorrir para Serápis enquanto segurava o monstro do cajado que ainda estava tentando fazer o seu caminho para a frente.
— Agora, meu senhor — Annabeth disse — conte-me o seu plano glorioso! Algo sobre as almas e vidas?
O monstro de estimação gritou em protesto, provavelmente porque ele podia ver Sadie escondida atrás do deus, fazendo sua arte de pavimento ultrassecreta. Serápis não pareceu notar.
— Eis aqui! — Ele abriu os braços musculosos. — O novo centro do meu poder!
Faíscas vermelhas brilhavam através do turbilhão congelado. A teia de luz ligou os pontos até que Annabeth viu o contorno brilhante da estrutura que Serápis estava construindo: uma torre maciça de noventa metros de altura, projetada em três camadas afuniladas – a base quadrada, o centro octogonal e o topo circular. No alto ardia um fogo tão brilhante como uma forja de Ciclopes.
— Um farol — disse Annabeth. — O Farol de Alexandria.
— Correto, minha jovem sacerdotisa.
Serápis deu um passo para trás como um professor dando uma palestra, embora sua bermuda floral desse uma impressão muito perturbadora. Seu chapéu de vime se mantinha inclinando-se para um lado e para o outro, espalhando grãos.
De alguma forma, ele ainda não percebera Sadie agachada atrás dele, rabiscando imagens bonitas com seu giz.
— Alexandria! — O deus se emocionou. — Uma vez a maior cidade do mundo, a fusão definitiva do poder grego e egípcio! Eu era o seu deus supremo, e agora eu vou ascender novamente. E vou criar minha nova capital aqui!
— Uh... na praia Rockaway?
Serápis parou e coçou a barba.
— Você tem um ponto. Esse nome não vai dar certo. Vamos chamá-la... Rockandria? Serapaway? Bem, vamos descobrir isso mais tarde! Nosso primeiro passo é completar o meu novo farol. Vai ser um farol para o mundo – desenhos das divindades da Grécia Antiga e do Egito Antigo aqui para mim tal como aconteceu nos velhos tempos. Me alimentarei de suas essências e me tornar o mais poderoso deus de todos!
Annabeth sentiu como se tivesse engolido uma colher de sopa de sal.
— Alimentar-se de suas essências. Quer dizer, destruí-los?
Serápis acenou com desdém.
— Destruir é uma palavra tão feia. Eu prefiro incorporar. Você conhece o meu histórico, espero? Quando Alexandre o Grande conquistou o Egito...
— Ele tentou fundir as religiões gregas e egípcias — disse Annabeth.
— Tentou e falhou — Serápis riu. — Alexandre escolheu um deus sol egípcio, Amon, para ser sua principal divindade. Isso não funcionou muito bem. Os gregos não gostaram de Amon. Nem os egípcios do Delta do Nilo. Eles viram Amon como um deus da parte alta do rio. Mas quando Alexandre morreu, seu general assumiu o Egito.
— Ptolomeu Primeiro — falou Annabeth.
Serápis sorriu, obviamente satisfeito.
— Sim... Ptolomeu.  Agora um mortal com a visão!
Levou toda a força de vontade de Annabeth não olhar para Sadie, que agora tinha completado seu círculo mágico e estava cutucando os hieróglifos com o dedo, murmurando alguma coisa em voz baixa, como se para ativá-los.
O monstro de três cabeças de estimação rosnou em desaprovação. Ele tentou dar um bote para frente, e Annabeth mal conseguiu segurá-lo. Seus dedos estavam enfraquecendo. Aura da criatura era tão repugnante como sempre.
— Ptolomeu criou um novo deus — ela falou, esforçando-se. — Ele criou você.
Serápis deu de ombros.
— Bem, não a partir do zero. Eu fui uma vez o deus de uma aldeia pequena. Ninguém tinha sequer ouvido falar de mim! Mas Ptolomeu descobriu minha estátua e trouxe-a para Alexandria. Ele tinha uns sacerdotes gregos e egípcios para fazerem augúrios e encantamentos e outros enfeites. Todos eles concordaram que eu era o grande deus Serápis, e devia ser adorado acima de todos os outros deuses. Eu fui um sucesso instantâneo!
Sadie entrou em seu círculo mágico. Ela soltou seu colar de prata e começou a balançá-lo como um laço.
O monstro de três cabeças rugiu, o que foi, provavelmente, um aviso ao seu mestre: Cuidado!
Mas Serápis estava animado. Enquanto ele falava, as tatuagens hieroglíficas e gregas em sua pele brilhavam mais intensamente.
— Tornei-me o deus mais importante dos gregos e egípcios! — disse. — Quanto mais as pessoas me adoravam, mais eu drenava o poder dos deuses antigos. Lenta, mas seguramente, tomei o seu lugar. O Mundo Inferior? Tornei-me seu mestre, substituindo tanto Hades quanto Osíris. O cão de guarda Cérbero foi transformado em meu cajado, que agora você segura. Suas três cabeças representam o passado, presente e futuro – tudo o que eu vou controlar quando o cajado me for devolvido.
O deus estendeu a mão. O monstro se esforçou para alcançá-lo. Os músculos do braço de Annabeth queimavam. Seus dedos começaram a escorregar.
Sadie ainda estava balançando seu pingente, murmurando um encantamento.
Por Hécate, Annabeth pensou, quanto tempo leva para lançar um feitiço estúpido?
Ela pegou o olhar de Sadie e viu a mensagem em seus olhos: Espere um pouco. Apenas mais alguns segundos.
Annabeth não tinha certeza de que tinha mais alguns segundos.
— A dinastia ptolomaica... — Ela cerrou os dentes. — Ela caiu séculos atrás. Seu culto foi esquecido. Como você voltou agora?
Serápis fungou.
— Isso não é importante. Aquele que me despertou... bem, ele tem delírios de grandeza. Acha que pode me controlar só porque encontrou algumas magias antigas do Livro de Tot.
Atrás do deus, Sadie se encolheu como se tivesse levado um soco entre os olhos. Aparentemente, este “Livro de Tot” atingiu um algo profundo nela.
— Você vê — Serápis continuou — de volta ao dia, o rei Ptolomeu decidiu que não era o suficiente me tornar um deus principal. Ele queria se tornar imortal, também. Declarou-se um deus, mas sua magia saiu pela culatra. Após sua morte, sua família foi amaldiçoada por gerações. A linhagem de Ptolomeu tornou-se cada vez mais fraca, até que a boba garota Cleópatra se suicidou e deu tudo para os romanos.
O deus zombou.
— Os mortais... sempre tão gananciosos. O mago que me despertou neste tempo acha que pode fazer melhor do que Ptolomeu. Somando-me apenas como um de seus experimentos com magia híbrida greco-egípcia. Ele deseja tornar-se um deus, mas ultrapassou a si mesmo. Eu estou acordado agora. Vou controlar o universo.
Serápis olhou fixamente para Annabeth com seus brilhantes olhos verdes. Suas feições pareciam mudar, lembrando a Annabeth de muitos deuses olímpicos diferentes: Zeus, Poseidon, Hades. Algo sobre o seu sorriso ainda lembrou Annabeth de sua mãe, Atena.
— Apenas penso, pequena semideusa — disse Serápis — que este farol chamará os deuses para mim como mariposas para uma vela. Assim que eu tiver consumido o seu poder, erguerei uma grande cidade. Construirei uma nova biblioteca de Alexandria com todo o conhecimento do mundo antigo, grego e egípcio. Como uma criança de Atena, você vai apreciá-la. Como a minha sacerdotisa, pense em todo o poder que terá!
Uma nova biblioteca de Alexandria.
Annabeth não poderia fingir que a ideia não a emocionou. Tanto conhecimento do mundo antigo foi destruído quando essa biblioteca tinha queimado.
Serápis deve ter visto a fome em seus olhos.
— Sim — ele estendeu a mão. — Chega de conversa, menina. Dê-me meu cajado!
— Você está certo — Annabeth resmungou. — Chega de conversa.
Ela desembainhou sua adaga e mergulhou-a na concha do monstro.


Tantas coisas poderiam ter dado errado. A maioria delas deu.
Annabeth estava esperando que a faca rachasse a concha, talvez até mesmo destruísse o monstro. Em vez disso, uma pequena fissura se abriu e expeliu magia vermelha tão quente quanto magma. Annabeth tropeçou para trás, os olhos ardendo.
Serápis berrou:
— TRAIÇÃO!
A criatura uivava, suas três cabeças tentando em vão alcançar a adaga cravada em suas costas.
No mesmo momento, Sadie lançou seu feitiço. Ela jogou o colar de prata e gritou:
— Tyet!
O pingente explodiu. Um hieróglifo prateado gigante envolveu o deus como um caixão transparente:



Serápis rugiu enquanto seus braços eram presos ao corpo.
Sadie gritou:
— Eu o nomeio Serápis, deus de Alexandria! Deus dos... hã, chapéus engraçados e cajados de três cabeças! Eu o prendo com o poder de Ísis!
Detritos começaram a cair do ar, caindo em torno de Annabeth. Ela se esquivou de uma parede de tijolos e uma caixa de fusíveis. Então percebeu que o monstro ferido rastejando para Serápis.
Ela se lançou naquela direção, apenas para ser atingida na sua cabeça latejando, e foi imediatamente enterrada em mais detritos.
Ela respirou fundo.
Ai, ai, ai.
Pelo menos ela não tinha sido enterrada por tijolos. Chutou seu caminho para fora de uma pilha de madeira compensada e arrancou uma lasca de quinze centímetros de sua camisa.
O monstro estava aos pés de Serápis. Annabeth sabia que ela deveria ter esfaqueado uma das cabeças do monstro, mas ela simplesmente não seria capaz de fazê-lo. Sempre fora sentimental quando se tratava de animais, mesmo quando eles faziam parte de uma criatura mágica do mal tentando matá-la. Agora era tarde demais.
O deus flexionou seus músculos consideráveis​​. A prisão prateada quebrou em torno dele. O cajado de três cabeças voou para sua mão, e Serápis se virou para Sadie Kane.
O círculo de proteção dela evaporou-se em uma nuvem vermelha.
— Você pretendia me prender? — Serápis exclamou. — Se atreve a me nomear? Você não tem sequer a linguagem adequada para me nomear, pequena maga!
Annabeth cambaleou para a frente, mas sua respiração era superficial. Agora que Serápis segurava o cajado, sua aura parecia dez vezes mais forte. Os ouvidos de Annabeth zumbiram. Ela podia sentir que sua vida estava sendo drenada – aspirada para o halo vermelho do deus.
De alguma forma, Sadie manteve sua posição, sua expressão desafiadora.
— Certo, Senhor Tigela de Cereal. Você quer linguagem adequada? HA-DI!
Um novo hieróglifo brilhou no rosto de Serápis:



Mas o deus o desviou com a mão livre. Ele fechou o punho e fumaça saiu entre seus os dedos, como se ele tivesse acabado de esmagar um motor a vapor em miniatura.
Sadie engoliu em seco.
— Isso é impossível. Como...
— Você espera uma explosão? — Serápis riu. — Sinto desapontá-la, filha, mas meu poder é grego e egípcio. Combina ambos, consome ambos, substitui ambos. Você está é a favorecida de Ísis, pelo que vejo? Excelente. Ela foi uma vez a minha esposa.
— O quê? — Sadie gritou. — Não. Não, não, não.
— Oh, sim! Quando eu depus Osiris e Zeus, Ísis foi forçada a me servir. Agora usarei você como uma porta de entrada para convocá-la aqui, já que você é ligada a ela. Ísis voltará a ser a minha rainha!
Serápis estendeu seu cajado. De cada uma das três bocas monstruosas, tentáculos vermelhos de luz foram adiante, circundando Sadie como galhos espinhosos.
Sadie gritou, e Annabeth finalmente superou seu choque.
Ela pegou a folha mais próxima de madeira – um quadrado oscilante do tamanho de um escudo – e tentou se lembrar de suas aulas de Frisbee Definitivo do Acampamento Meio-Sangue.
— Ei, Cabeça de Grãos! — ela gritou.
Ela virou a partir da cintura, usando a força do seu corpo inteiro. A madeira compensada navegou através do ar, e quando Serápis virou-se para olhar para ela, a ponta acertou-lhe entre os olhos.
— GAAH!
Annabeth mergulhou para um lado quando Serápis apontou o cajado cegamente em sua direção. As três cabeças do monstro maldito soltaram colunas superaquecidas de vapor, derretendo um buraco no concreto onde Annabeth estava momentos antes.
Ela continuou se movendo, escolhendo seu caminho através de montes de destroços que agora cobriam o chão. Ela mergulhou atrás de uma pilha de vasos sanitários quebrados, quando o cajado do deus explodiu outra coluna tríplice de vapor em sua direção tão perto que ela sentiu bolhas subirem na parte de trás de seu pescoço.
Annabeth viu Sadie a cerca de trinta metros de distância, de pé e cambaleando para longe de Serápis. Pelo menos ela ainda estava viva. Mas Annabeth sabia que ela precisaria de tempo para se recuperar.
— Ei, Serápis! — Annabeth chamou de trás de uma montanha de cômodas. — Como é gosto de compensado?
— Filha de Atena! — O deus gritou. — Vou devorar sua força vital! Usá-la-ei para destruir a sua miserável mãe! Pensa que é sábia? Você não é nada comparado com quem me despertou, e mesmo ele não entende o poder que desencadeou. Nenhum de vocês ganhará a coroa da imortalidade. Eu controlo o passado, presente e futuro. Eu governarei os deuses!
E agradeço pelo longo discurso, Annabeth pensou.
No momento em que Serápis atacou, transformando os vasos sanitários em um monte de porcelana derretida, Annabeth tinha rastejado a metade do caminho para o outro lado da sala.
Ela estava à procura de Sadie quando a maga apareceu de seu esconderijo, a apenas dez metros de distância, e gritou:
— Suh-FAH
Annabeth se virou e viu um novo hieróglifo, a vinte metros de altura, brilhando na parede atrás de Serápis:



Argamassa se ​​desintegrou. A lateral do prédio gemeu, e quando Serápis gritou “Não!”, toda a parede desabou em cima dele em uma onda de tijolos, enterrando-o sob milhares de toneladas de destroços.
Annabeth engasgou com uma nuvem de poeira. Seus olhos ardiam. Ela sentia que fora cozida em uma panela de arroz, mas conseguiu tropeçar para o lado de Sadie.
A jovem maga estava coberta de cal, como se tivesse rolado no açúcar. Ela olhou para o buraco que tinha feito na lateral do prédio.
— Isso funcionou — ela murmurou.
— Foi genial — Annabeth apertou seus ombros. — Que feitiço foi esse?
— Afrouxar — disse Sadie. — Eu contava... bem, que fazer as coisas desmoronarem é geralmente mais fácil do que construí-las.
Como se em sincronia, a parte remanescente da parede rangeu e caiu.
— Vamos — Annabeth pegou a mão de Sadie. — Precisamos sair daqui. Estas paredes...
As fundações tremeram. Sob os escombros, veio um rugido abafado. Raios de luz vermelha dispararam de lacunas.
— Oh, por favor! — Sadie protestou. — Ele ainda está vivo?
O coração de Annabeth se afundou, mas ela não estava surpresa.
— Ele é um deus. Ele é imortal.
— Bem, então como...
A mão de Serápis, ainda segurando seu cajado, atravessou os tijolos e tábuas. As três cabeças do monstro maldito soltaram jatos de energia em todas as direções. A faca de Annabeth permanecia fincada até o punho na concha do monstro, a cicatriz em volta dela liberando hieróglifos em brasa, letras gregas e palavrões em inglês – milhares de anos de palavrões sendo expelidos.
Como uma linha do tempo, Annabeth pensou.
De repente, uma ideia apareceu em sua mente.
— Passado, presente e futuro. Ele controla tudo isso.
— O quê? — Sadie perguntou.
— O cajado é a chave — disse Annabeth. — Temos que destruí-lo.
— Sim, mas...
Annabeth correu em direção à pilha de escombros. Seus olhos estavam fixos no punho de sua adaga, mas era tarde demais.
O outro braço de Serápis se soltou, e depois a cabeça, com seu chapéu de vaso esmagado que deixava cair grãos. O frisbee de madeira compensada de Annabeth tinha quebrado seu nariz e deixado seus olhos roxos, deixando-o com uma aparência de guaxinim.
— Eu vou matá-la! — ele eclamou, ao mesmo tempo em que Sadie gritou de novo:
— Suh-FAH!
Annabeth bateu em retirada, e Serápis gritou “Nããão!” enquanto outra seção da parede de trinta andares caiu em cima dele.
A magia deve ter sido demais para Sadie. Ela caiu como uma boneca de pano, e Annabeth a pegou pouco antes de sua cabeça bater no chão. O restante da parede estremeceu e se inclinou para dentro. Annabeth pegou a menina mais jovem e a levou para fora.
De alguma forma, ela abriu caminho para fora do edifício antes que o resto dele entrasse em colapso. Annabeth ouviu o rugido terrível, mas ela não tinha certeza se era do desmoronamento atrás dela ou do som de sua dor da pancada e exaustão.
Ela cambaleou até alcançar os trilhos do metrô. Colocou Sadie suavemente na grama.
Os olhos de Sadie estavam revirados na órbita. Ela murmurava incoerentemente. Sua pele parecia tão febril que Annabeth teve que lutar contra a sensação de pânico. Vapor subia das mangas da maga.
Perto do acidente de trem, os mortais tinham notado o novo desastre. Veículos de emergência corriam a toda, indo para o prédio desabado. Um helicóptero de notícias circulava acima.
Annabeth estava tentada a gritar por ajuda médica, mas, antes que ela pudesse, Sadie respirou fundo. Suas pálpebras se abriram.
Ela cuspiu um pedaço de concreto, sentou-se lentamente e olhou para a coluna de poeira que subia no céu a partir de sua pequena arte.
— Certo — Sadie murmurou. — O que devemos destruir na próxima?
Annabeth soluçou de alívio.
— Graças aos deuses você está bem. Você estava literalmente cozinhando.
Sadie estava tirando um pouco de pó do rosto.
— Muita magia e posso literalmente virar pó. Isso é tão perto de me sacrificar que eu gostaria de chegar hoje.
Annabeth assentiu. Ela estava com ciúmes de todas as magias legais que Sadie poderia fazer, mas agora estava feliz em ser apenas uma semideusa.
— Sem mais magia para você.
— Não por um tempo. — Sadie fez uma careta. — Suponho que Serápis não foi derrotado, não é?
Annabeth olhou para o local do pretenso farol. Ela queria que o deus tivesse ido embora, mas ela sabia melhor que isso. Ela ainda podia sentir sua aura perturbando o mundo, puxando a sua alma e drenando sua energia.
— Nós temos alguns minutos na melhor das hipóteses — ela adivinhou. — Ele vai trabalhar para se livrar. Então virá atrás de nós.
Sadie gemeu.
— Precisamos de reforços. Infelizmente, eu não tenho energia suficiente para abrir um portal, mesmo que eu pudesse encontrar um. Ísis não está me respondendo, também. Ela não quer se mostrar e ter sua essência absorvida pelo Senhor Tigela de Cereal — ela suspirou. — Será que você tem quaisquer outros semideuses na discagem rápida?
— Se ao menos... — Annabeth vacilou.
Ela percebeu que sua mochila ainda estava no ombro. Como não tinha escorregado durante a luta? E por que parecia tão leve?
Ela pegou a mochila e a abriu. Os livros de arquitetura sumiram. Em vez disso, aninhado no fundo estava um quadrado de ambrosia do tamanho de um brownie embrulhado em papel celofane, e sob ele...
O lábio inferior de Annabeth tremeu. Ela tirou algo que não carregava há muito tempo: seu boné azul surrado do New York Yankees.
Ela olhou para o céu escuro.
— Mãe?
Não houve resposta, mas Annabeth não conseguia pensar em outra explicação. Sua mãe tinha enviado ajuda. A realização a incentivou e a aterrorizou. Se Atena estava tomando um interesse pessoal nesta situação, Serápis era realmente uma ameaça monumental – e não apenas para Annabeth, mas para os deuses.
— É um boné de beisebol — Sadie observou. — Isso é bom?
— Eu... eu acho que sim — Annabeth respondeu. — Da última vez que usei, a magia não funcionou. Mas se isso acontecer... eu poderia ter um plano. Vai ser a sua vez distrair Serápis.
Sadie franziu a testa.
— Mencionei que estou sem da magia?
— Tudo bem. Como você está em blefar, mentir e falar baboseiras?
Sadie ergueu uma sobrancelha.
— Eu sempre disse que essas são as minhas qualidades mais atraentes.
— Excelente — disse Annabeth. — Então é hora de eu te ensinar um pouco de grego.


Elas não tinham muito tempo.
Annabeth mal tinha acabado de treinar Sadie quando o edifício em ruínas balançou, detritos explodiram e Serápis emergiu, rugindo e amaldiçoando.
Assustou os trabalhadores de emergência espalhados pelo cenário, mas eles não pareciam perceber o deus de quatro metros e meio de altura marchando para longe dos destroços, nem seu cajado de três cabeças expelindo vapor e feixes vermelhos de magia para o céu.
Serápis foi direto na direção de Sadie e Annabeth.
— Pronta? — Perguntou Annabeth.
Sadie exalou.
— Eu tenho escolha?
— Aqui — Annabeth deu-lhe o quadrado de ambrosia. — Comida de semideus. Pode restaurar a sua força.
— Pode, não é?
— Se eu posso usar sua poção de cura, você deve ser capaz de comer ambrosia.
— Saúde, então — Sadie deu uma mordida. A cor voltou para suas bochechas. Seus olhos brilharam. — Tem gosto dos biscoitos da minha avó.
Annabeth sorriu.
— Ambrosia sempre tem gosto da sua comida favorita.
— Isso é vergonhoso — Sadie deu outra mordida e engoliu. — Os biscoitos da vovó são sempre queimados e bastante horríveis. Ah, aqui vem o nosso amigo.
Serápis chutou um motor em chamas para fora de seu caminho e foi pesadamente para os trilhos do trem. Ele ainda não parecia ter visto Sadie e Annabeth, mas supôs que ele poderia senti-las. Ele examinou o horizonte, sua expressão cheia de raiva assassina.
— Aqui vamos nós — Annabeth colocou seu boné dos Yankees.
Os olhos de Sadie se arregalaram.
— Muito bem. Você está completamente invisível. Não vai começar a soltar faíscas, vai?
— Por que eu faria isso?
— Ah... Meu irmão lançou um feitiço de invisibilidade uma vez. Não funcionou tão bem. De qualquer forma, boa sorte.
— Para você também.
Annabeth correu para um lado quando Sadie acenou os braços e gritou:
— Ei, Serápis!
— MORTE PARA VOCÊ! — o deus gritou.
Ele andou para frente, com os pés enormes fazendo crateras no asfalto.
Como elas tinham planejado, Sadie o levou em direção à praia. Annabeth agachou-se atrás de um carro abandonado e esperou que Serápis passasse. Invisível ou não, ela não correria riscos desnecessários.
— Vamos! — Sadie insultou o deus. — Isso é o mais rápido você pode correr, seu completo idiota?
— RAAR!
O deus passou rapidamente do lugar em que Annabeth estava.
Ela correu atrás de Serápis, que chegou com Sadie na beira da arrebentação.
O deus levantou seu cajado brilhante, as três cabeças monstruosas expelindo vapor.
— Alguma última palavra, maga?
— Para você? Sim!
Sadie girou os braços em movimentos que poderiam ser de mágica – ou, eventualmente, de kung fu.
— Meana aedei thea! — Ela entoou as linhas Annabeth lhe ensinara. — En... ponte pathen algae!
Annabeth fez uma careta. A pronúncia de Sadie era muito ruim. Ela recitara mais ou menos bem a primeira linha: Cante de raiva, ó deusa. Mas a segunda linha deveria ter sido: No mar, cubra-se de tormento. Em vez disso, Sadie havia dito algo como: No mar, cubra-se de musgo!
Felizmente, o som do grego antigo foi o suficiente para chocar Serápis. O deus vacilou, seu cajado de três cabeças ainda erguido.
— O que você está...
— Ísis, ouça-me! — Sadie continuou. — Atena, venha em meu auxílio! — Ela improvisou mais algumas frases — Alguns gregos, alguns antigos egípcios.
Enquanto isso, Annabeth na concha do monstro. Se Serápis apenas baixasse seu cajado...
— Alfa, beta, gama! — Sadie gritou. — Gyros, spanakopita. Presto! — Ela sorriu em triunfo. — Pronto. Está feito!
Serápis olhou para ela, claramente perplexo. As tatuagens vermelhas em sua pele escureceram. Alguns dos símbolos se transformaram em pontos de interrogação e rostos tristes. Annabeth se aproximou lentamente... estava a seis metros dele agora.
— Está feito? — Perguntou Serápis. — Do que diabos você está falando, garota? Estou prestes a destruí-la.
— E se o fizer — Sadie advertiu — ativará o elo da morte que lhe enviará ao esquecimento!
— Elo da morte? Não existe tal coisa!
Serápis baixou seu cajado. As três cabeças de animais ficaram no nível dos olhos de Annabeth.
Seu coração batia forte. Três metros a percorrer. Então, se ela pulasse, poderia ser capaz de alcançar sua faca. Ela só teria uma chance de retirá-la.
As cabeças do cajado não pareciam notá-la. Elas rosnaram e morderam o ar, cuspindo vapor em direções aleatórias. Lobo, leão, cão – passado, presente e futuro.
Para fazer o máximo de dano, ela sabia que cabeça tinha que atacar.
Mas por que o futuro tinha que ser a cabeça de um cachorro? O Labrador preto era o menos ameaçador das cabeças de monstros. Com seus olhos dourados e grandes orelhas de abano, ele lembrou a Annabeth de muitos animais de estimação amigáveis que ela tinha conhecido.
Não é um animal de verdade, ela disse a si mesma. É parte de um cajado mágico.
Mas, enquanto ela chegava mais perto, seus braços ficavam pesados​​. Ela não conseguia olhar para o cão sem se sentir culpada.
O futuro é uma coisa boa, o cão parecia dizer. É bonito e macio!
Se Annabeth acertasse a cabeça do Labrador, ela mataria seu próprio futuro – os planos que tinha para a faculdade, os planos que tinha feito com Percy...?
Sadie ainda estava falando. Seu tom tinha tomado uma borda mais severa.
— Minha mãe, Ruby Kane — Sadie falou a Serápis — ela deu a vida para selar Apófis no Duat. Apófis, veja bem – que é milhares de anos mais velho que você e muito mais poderoso. Então, se acha que vou deixar que um deus de segunda categoria tome o mundo inteiro, pense novamente!
A raiva em sua voz não era um mero blefe, e de repente Annabeth estava feliz de ter dado o trabalho de encarar Serápis de baixo para Sadie. A maga era surpreendentemente assustadora quando queria ser.
Serápis deslocou seu peso desconfortavelmente.
— Eu vou destruí-la!
— Boa sorte — disse Sadie. — Eu já impregnei-o com magias gregas e egípcias tão poderosas que elas vão espalhar seus átomos para as estrelas.
— Você mente! — Serápis gritou. — Eu não sinto nenhum feitiço sobre mim. Mesmo aquele que me invocou não tinha essa magia.
Annabeth estava cara a cara com o cão preto. O punhal estava um pouco mais acima, mas cada molécula de seu corpo se rebelava contra a ideia de matar o animal... Matar o futuro.
Enquanto isso, Sadie conseguiu soltar uma gargalhada valente.
— Aquele que o invocou? Você quer dizer o velho vigarista do Setne?
Annabeth não conhecia o nome, mas Serápis obviamente sim. O ar ao redor dele ondulava com o calor. O leão rosnou. O lobo arreganhou os dentes.
— Oh, sim — Sadie continuou. — Estou muito familiarizada com Setne. Suponho que ele não lhe contou quem permitiu que ele voltasse ao mundo. Ele só está vivo porque eu o poupei. Você pensa que magia dele é poderosa? Tente. Faça isso AGORA.
Annabeth se moveu. Percebeu Sadie estava falando com ela, e não com o deus. O blefe estava ficando ultrapassado. Ela estava fora de tempo.
Serápis zombou.
— Boa tentativa, maga.
Quando ele ergueu o cajado para atingi-la, Annabeth pulou. Sua mão se fechou em volta do punho da adaga, e ela a puxou.
— O quê? — Serápis exclamou.
Annabeth soltou um soluço gutural e mergulhou o punhal no pescoço do cão.


Ela esperava uma explosão.
Em vez disso, o punhal foi sugado para dentro do pescoço do cão como um clipe de papel em um aspirador de pó. Annabeth mal teve tempo de soltá-lo
Ela rolou para o chão quando o cão uivou, encolheu murchou até implodir. Serápis rugiu. Ele balançou seu cajado, mas ele não conseguia largá-lo.
— O que você fez? — Ele ganiu.
— Tomei o seu futuro — disse Annabeth. — Sem ele, você não é nada.
O cajado abriu. Ele ficou tão quente que Annabeth sentiu os pelos em seus braços começarem a queimar. Ela rastejou para trás através da areia quando as cabeças de leão e lobo foram sugados para o seu interior. Todo o cajado entrou em colapso em uma bola de fogo vermelha na palma da mão do deus.
Serápis tentou soltá-lo. O cajado só ficou mais brilhante. Seus dedos se enroscaram para dentro. Sua mão foi consumida. Todo o seu braço contraiu-se e vaporizou, uma vez que foi arrastado para a esfera de fogo.
— Eu não posso ser destruído! — Serápis gritou. — Eu sou o auge de seus mundos combinados! Sem a minha orientação, vocês nunca alcançarão a coroa! Vocês todos perecerão! Vocês deveriam...
A bola de fogo explodiu e sugou o deus em seu vórtice. Em seguida, ela piscou e sumiu como se nunca tivesse existido.


— Ugh — disse Sadie.
Elas se sentaram na praia ao pôr do sol, observando a maré e ouvindo a sirene de veículos de emergência por trás delas.
Pobre Rockaway. Primeiro um furacão. Depois, um acidente de trem, um colapso de edifício e um deus furioso, tudo no mesmo dia. Algumas comunidades nunca tem uma pausa.
Annabeth deu um gole em sua Ribena – uma bebida britânica que Sadie tinha convocado a partir de sua “área de armazenamento pessoal” no Duat.
— Não se preocupe — Sadie assegurou. — Convocar lanches não é magia complicada.
Com a sede que Annabeth estava, o Ribena tinha um sabor ainda melhor que néctar.
Sadie parecia estar se recuperando. A ambrosia tinha feito o seu trabalho. Agora, em vez de parecer como se estivesse às portas da morte, ela apenas parecia ter sido atropelada por um bando de mulas.
As ondas lambiam os pés de Annabeth, ajudando-a a relaxar, mas ela ainda sentia uma inquietação por causa de seu encontro com Serápis – o zumbido em seu corpo, como se todos os seus ossos estivessem se dissolvendo.
— Você mencionou um nome — ela lembrou. — Setne?
Sadie franziu o cenho.
— É uma longa história. Um mago do mal, que voltou dos mortos.
— Oh, eu odeio quando as pessoas más voltam dos mortos. Você disse... você lhe permitiu sair em liberdade?
— Bem, meu irmão e eu precisávamos da ajuda dele. Na época, não tínhamos muita escolha. De qualquer forma, Setne escapou com o Livro de Tot, a coleção mais perigosa de feitiços no mundo.
— E Setne usou a magia para despertar Serápis.
— Aparentemente — Sadie encolheu os ombros. — O monstro crocodilo, com que meu irmão e o seu namorado lutaram há um tempo atrás, o Filho de Sobek... Eu não ficaria surpresa se esse fosse outro dos experimentos de Setne. Ele está tentando combinar magia grega e egípcia.
Após o dia que ela acabara de ter, Annabeth queria colocar seu boné de invisibilidade novamente, cavar um buraco e dormir para sempre. Ela já salvara o mundo vezes o bastante. Ela não queria pensar sobre outra ameaça em potencial. No entanto, não poderia ignorá-la. Ela tocou a aba do seu boné dos Yankees e pensou por que sua mãe havia lhe devolvido – e com a magia restaurada.
Atena parecia estar enviando uma mensagem: Sempre haverá ameaças poderosas demais para enfrentar cara-a-cara. Você não tem agido com discrição. Deve pisar com cuidado aqui.
— Setne quer ser um deus — disse Annabeth.
O vento e a água de repente ficaram frios. Cheirava menos como o ar fresco do mar, e mais como ruínas em chamas.
— Um deus... — Sadie estremeceu. — Aquele velhote magricela de tanga e cabelo de Elvis. Que pensamento horrível.
Annabeth tentou imaginar o cara Sadie estava descrevendo. Então ela decidiu que não era o melhor.
— Se o objetivo da Setne é a imortalidade — disse Annabeth — acordar Serápis não será seu último truque.
Sadie riu sem humor.
— Oh, não. Ele só está brincando com a gente agora. O Filho de Sobek... Serápis. Aposto que Setne planejou ambos os eventos só para ver o que iria acontecer, como os semideuses e magos reagiriam. Ele está testando a sua nova magia, e as nossas capacidades, antes de fazer sua oferta real de poder.
— Ele pode não ter sucesso — Annabeth observou, esperançosa. — Ninguém pode se tornar um deus apenas lançando um feitiço.
A expressão de Sadie não era reconfortante.
— Espero que você tenha razão. Porque um deus que sabe grego e magia egípcia, que pode controlar dois mundos... Eu não posso nem imaginar.
O estômago de Annabeth contorceu-se como se estivesse aprendendo uma nova posição de ioga. Em qualquer guerra, planejar bem é mais importante do que poder absoluto. Se este Setne havia orquestrado a batalha de Percy e Carter com aquele crocodilo, se ele tivesse projetado a ascensão de Serápis e assim atraindo Sadie e Annabeth a confrontá-lo... Um inimigo que planeja tão bem seria muito difícil de parar.
Ela cravou os pés na areia.
— Serápis disse outra coisa antes de desaparecer – vocês nunca vão alcançar a coroa. Pensei que ele estivesse usando uma metáfora. Então eu me lembrei do que ele disse sobre Ptolomeu I, o rei que tentou se tornar um deus.
— A coroa da imortalidade — Sadie lembrou. — Talvez um pschent.
Annabeth fez uma careta.
— Eu não conheço essa palavra. Um shent?
Sadie soletrou a palavra.
— Uma coroa egípcia, mais parece um pino de boliche. Não é uma peça de moda adorável, mas um faraó usando um pschent fará com o seu poder se torne divino. Se Setne está tentando recriar a magia que o tornará deus de um velho rei, aposto cinco libras e um prato de biscoitos queimados da vovó que ele está tentando encontrar a coroa de Ptolomeu.
Annabeth decidiu não aceitar essa aposta.
— Nós temos que detê-lo.
— Certo — Sadie tomou um gole de Ribena. — Eu vou voltar para a Casa do Brooklyn. Depois que eu bater no meu irmão por não confiar em mim e contar sobre vocês semideuses, colocarei nossos pesquisadores para trabalhar e ver o que podemos aprender sobre Ptolomeu. Talvez a coroa esteja num museu em algum lugar — Sadie mordeu o lábio. — Apesar de eu odiar museus...
Annabeth traçou seu dedo através da areia. Sem pensar muito nisso, ela desenhou o símbolo hieroglífico para Ísis: o tyet.
— Vou pesquisar, também. Meus amigos no chalé de Hécate podem saber algo sobre a magia de Ptolomeu. Talvez eu consiga falar com minha mãe para me aconselhar.
Pensar em sua mãe a fez ficar desconfortável.
Hoje, Serápis esteve a ponto de destruir tanto Annabeth quanto Sadie. Ele ameaçou usá-las como portais para levar Atena e Ísis para sua condenação.
Os olhos de Sadie estavam tempestuosos, como se ela estivesse pensando o mesmo.
— Não podemos deixar que Setne continue a fazer esses experimentos. Ele vai destruir nossos mundos se continuarmos separados. Temos que encontrar esta coroa, ou... — ela olhou para o céu e sua voz vacilou. — Ah, meu transporte está aqui.
 Por um momento, Annabeth pensou que o Argo II estava descendo das nuvens, mas esse era um tipo diferente de barco voador – uma barca egípcia um pouco menor, com olhos pintados na proa e uma única vela branca estampada com o símbolo tyet.
Ele pousou delicadamente na borda da praia.
Sadie levantou-se e limpou a areia das suas calças.
— Quer uma carona para casa?
Annabeth tentou imaginar um barco como este navegando para o Acampamento Meio-Sangue.
— Hum, está tudo bem. Acho que dá para ir sozinha.
— Como quiser — Sadie colocou a bolsa nos ombros, então ajudou Annabeth a se levantar. — Você diz que Carter desenhou um hieróglifo na mão do seu namorado. Ótimo, mas eu prefiro ficar em contato com você diretamente.
Annabeth sorriu.
— Você está certa. Não posso confiar em garotos na comunicação.
Eles trocaram números de telefone celular.
— Só me ligue se for urgente — Annabeth avisou.  — Falar no celular atrai monstros.
Sadie pareceu surpresa.
— Sério? Nunca percebi. Acho então que não poderei enviar selfies engraçadas no Instagram, então.
— Provavelmente não.
— Bem, até a próxima.
Sadie jogou seus braços em volta de Annabeth.
Annabeth estava um pouco chocada por estar recebendo um abraço de uma garota que tinha acabado de conhecer – uma garota que poderia facilmente ter visto Annabeth como uma inimiga. Mas o gesto a fez se sentir bem. Em situações de vida e morte, Annabeth tinha aprendido, você precisa fazer amigos muito rápido.
Ela deu um tapinha no ombro de Sadie.
— Fique em segurança.
— Impossível.
Sadie subiu em seu barco, que foi empurrado para o mar. Um nevoeiro subiu do nada, engrossando ao redor do navio. Quando a névoa clareou, o navio e Sadie Kane tinham ido embora.
Annabeth olhou para o oceano vazio. Ela pensou sobre a névoa e o Duat e como eles estavam ligados.
Pensou principalmente no cajado de Serápis, e no uivo que o cão preto dera quando ela esfaqueou-o com sua adaga.
— Isso não vai destruir meu futuro — assegurou a si mesma — eu faço o meu próprio futuro.
Mas em algum lugar lá fora, um mágico chamado Setne tinha outras ideias. Se Annabeth iria detê-lo, tinha que pensar no que fazer.
Ela se virou e começou caminhar pro outro lado da praia, indo para o leste na longa viagem de volta ao Acampamento Meio-Sangue.

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