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O Ladrão de Raios - CAP. 21

.. sábado, 16 de março de 2013

Capítulo 21 - Meu acerto de contas

É gozado como os seres humanos são capazes de enrolar a sua mente em volta das coisas e encaixá-las na sua versão de realidade. Quíron me contara isso muito tempo atrás. Como de costume, eu só dei bola para sua sabedoria muito tempo depois. De acordo com as notícias de Los Angeles, a explosão na praia de Santa Monica tinha sido causada quando um sequestrador enlouquecido disparou uma espingarda contra uma viatura da polícia. Ele acidentalmente atingiu um tubo principal de gás que se rompera durante o terremoto. Esse sequestrador enlouquecido (também conhecido como Ares) era o mesmo homem que me abduzira com dois outros adolescentes em New York e nos trouxera até o outro lado do país em uma odisseia de terror que durara dez dias. O pobrezinho do Percy Jackson, afinal, não era um criminoso internacional. Ele causara uma comoção naquele ônibus da Greyhound em New Jersey tentando escapar do seu sequestrador (e depois, testemunhas chegaram a jurar que tinham visto o homem de roupa de couro no ônibus – "Por que não me lembrei dele antes?"). O homem enlouquecido causara a explosão no Arco de St. Louis. Afinal, nenhum garotinho poderia ter feito aquilo. Uma garçonete preocupada de Denver vira o homem ameaçar seus sequestrados do lado de fora do seu restaurante, chamara um amigo para tirar uma foto, e notificara a polícia. Finalmente, o bravo Percy Jackson (eu estava começando a gostar desse menino) subtraíra uma espingarda do seu sequestrador em Los Angeles e lutara contra ele, espingarda contra rifle, na praia. A polícia chegara bem a tempo. Mas, na espetacular explosão, cinco viaturas da polícia foram destruídas e o sequestrador fugira. Não houve mortes. Percy Jackson e seus dois amigos estavam em segurança, sob custódia da polícia. Os repórteres nos forneceram essa história inteira. Nós apenas assentimos e nos fizemos de chorosos e exaustos (o que não foi difícil), e representamos o papel de crianças vitimizadas para as câmeras.

– Tudo o que eu quero – disse eu, contendo as lágrimas – é ver o meu adorado padrasto de novo. Toda vez que o via na tevê me chamando de punk delinquente, eu sabia... de algum modo... que tudo ia dar certo. E eu sei que ele vai querer recompensar uma por uma todas as pessoas desta linda cidade de Los Angeles com um eletrodoméstico grátis, dos grandes, da sua loja. Aqui está o número do telefone.
A polícia e os repórteres ficaram tão comovidos que passaram o chapéu e levantaram dinheiro para três passagens no próximo avião para Nova York. Eu sabia que não havia escolha senão voar. Esperava que Zeus me desse algum tempo de lambuja, consideradas as circunstâncias. Mas ainda assim foi difícil me forçar a embarcar no voo. A decolagem foi um pesadelo. Cada momento de turbulência era mais assustador que um monstro grego. Eu não larguei dos braços da poltrona até pousarmos em segurança no aeroporto de La Guardia. A imprensa local aguardava por nós do lado de fora da segurança, mas conseguimos escapar graças a Annabeth, que atraiu para longe com o seu boné dos Yankees invisível, gritando:
– Eles estão lá, perto da sorveteria! Venham! e depois juntou a nós na área de retirada de bagagem. Separamo-nos no ponto de táxi. Eu disse a Annabeth e Grover para voltar à Colina Meio-Sangue e contar a Quíron o que acontecera. Eles protestaram, e era difícil deixá-los partir depois de tudo que passamos juntos, mas eu sabia que tinha de cumprir essa última parte da minha missão sozinho. Se as coisas dessem errado, se os deuses não acreditassem em mim... eu queria que Annabeth e Grover sobrevivessem para contar a verdade a Quíron. Embarquei em um táxi e segui para Manhattan.


Trinta minutos depois, entrei no saguão do Edifício Empire State. Devo ter parecido uma criança abandonada, com minhas roupas esfarrapadas e minha cara toda arranhada. Eu não dormia havia pelo menos vinte e quatro horas.
Fui até o guarda na mesa da recepção e disse:
– Seiscentésimo andar.
Ele estava lendo um livro enorme com a figura de um feiticeiro na capa. Eu não curto muito fantasia, mas acho que o livro era bom, porque o guarda levou algum tempo para erguer os olhos.
– Esse andar não existe, garoto.
– Eu preciso de uma audiência com Zeus. – Ele me deu um sorriso vago. – O quê?
– Você me ouviu.
Eu já estava quase concluindo que aquele cara era apenas um mortal comum, e era melhor eu correr antes que ele chamasse a patrulha da camisa de força, quando ele disse:
– Sem hora marcada, nada de audiência, garoto. O Senhor Zeus não atende ninguém sem aviso prévio.
– Ah, eu acho que ele vai abrir uma exceção.
Tirei a mochila das costas e abri o zíper. O guarda olhou para o cilindro metálico lá dentro sem entender o que era por alguns segundos. Então seu rosto empalideceu.
– Isto não é...
– Sim, é – garanti. – Você quer que eu o tire e...
– Não! Não!
Ele se ergueu atabalhoadamente da sua cadeira, tateou em volta da mesa procurando um cartão-chave, e o entregou para mim.
– Insira na fenda de segurança. Certifique-se de que ninguém mais esteja no elevador com você.
Fiz o que ele me disse. Assim que as portas do elevador se fecharam, enfiei o cartão na fenda. O cartão desapareceu e um novo botão apareceu no quadro, um botão vermelho que dizia 600. Apertei e esperei, e esperei. Havia música tocando. "Raindrops keepfalling on my head..." Finalmente, plim. As portas se abriram. Saí e quase tive um ataque do coração. Eu estava em um estreito caminho de pedra no meio do ar. Abaixo de mim se encontrava Manhattan, da altura de um avião.
Diante de mim, degraus de mármore branco subiam em espiral pelo meio de uma nuvem até o céu. Meus olhos seguiram a escada até o fim, onde meu cérebro simplesmente não pôde aceitar o que vi. Olhem outra vez, disse meu cérebro. Estamos olhando, meus olhos insistiram. Está realmente lá. Do topo das nuvens se erguia o pico decapitado de uma montanha, o cume coberto de neve. Na encosta da montanha havia dúzias de palácios com vários níveis – uma cidade de mansões – todos com pórticos de colunas brancas, terraços dourados e braseiros de bronze brilhando com mil fogos. Estradas se enroscavam de um jeito maluco até o pico, onde o maior dos palácios resplandecia contra a neve. Jardins precariamente encarapitados floresciam com oliveiras e roseiras. Pude distinguir um mercado a céu aberto cheio de tendas coloridas, um anfiteatro de pedra construído em um lado da montanha, um hipódromo e um coliseu do outro. Era uma cidade grega antiga, só que não estava em ruínas. Era nova, limpa e colorida, como Atenas deve ter sido há dois mil e quinhentos anos.
Este palácio não pode estar aqui, disse para mim mesmo. A ponta de uma montanha pendurada em cima da cidade de Nova York como um asteroide de um bilhão de toneladas? Como podia uma coisa assim estar ancorada acima do Edifício Empire State a plena vista de milhões de pessoas, e não ser notada? Mas aqui estava. E aqui estava eu. Minha viagem pelo Olimpo foi deslumbrante. Passei por algumas ninfas das florestas que deram risadinhas e me atiraram azeitonas do seu pomar. No mercado, mascates se ofereceram para vender ambrosia-no-palito, um escudo novo e uma réplica genuína do Velocino de Ouro em tecido cintilante, conforme anunciado na tevê Hefesto. As nove musas afinavam seus instrumentos para um concerto no parque enquanto uma pequena multidão se reunia – sátiros, náiades e um bando de adolescentes de boa aparência que talvez fossem deuses e deusas menores.
Ninguém parecia preocupado com uma guerra civil iminente. De fato, todo mundo parecia estar num estado de ânimo festivo. Vários se voltaram para me ver passar e cochicharam entre si. Subi pela estrada principal rumo ao grande palácio no pico. Era uma cópia invertida do palácio no Mundo Inferior. Lá, tudo era preto e bronze. Aqui, tudo rebrilhava em branco e prata. Dei-me conta de que Hades deve ter construído o seu palácio para se parecer com este. Ele não era bem-vindo no Olimpo, exceto no solstício de inverno, então construiu seu próprio Olimpo embaixo da terra. A despeito da minha má experiência com ele, senti pena do cara. Ser banido deste palácio parecia realmente injusto. Era de deixar qualquer um amargo. Degraus levavam a um pátio central. Além dele, a sala do trono. Sala não é exatamente a palavra certa. O lugar fazia a Grande Estação Central parecer um armário de vassouras. Colunas maciças se erguiam até um teto abobadado, que era decorado com constelações que se moviam. Doze tronos, construídos para seres do tamanho de Hades, estavam arrumados em um U invertido, exatamente como os chalés do Acampamento Meio-Sangue. Uma enorme fogueira crepitava no braseiro central. Os tronos estavam vazios com exceção de dois no fim: o trono principal à direita e um imediatamente à sua esquerda. Ninguém precisou me dizer quem eram os dois deuses que estavam sentados lá, esperando que eu me aproximasse. Cheguei à frente deles com as pernas tremendo. Os deuses estavam em forma humana gigante, como Hades estivera, mas eu mal podia olhar para eles sem sentir um formigamento, como se o meu corpo estivesse começando a queimar. Zeus, o Senhor dos Deuses, usava um terno risca-de-giz azul-escuro. Estava sentado em um trono simples de platina maciça. Tinha uma barba bem aparada, cinza-mármore e preta, como uma nuvem de tempestade. Seu rosto era orgulhoso belo e severo, os olhos tinham o tom cinzento da chuva. Quando me aproximei dele, o ar estralou e senti cheiro de ozônio. O deus sentado ao lado dele era seu irmão, sem dúvida, mas estava vestido de modo muito diferente. Lembrou-me um catador de praia de Key West. Usava sandálias de couro, bermudas caqui e uma camisa marca Tommy Bahama toda estampada de coqueiros e papagaios. Sua pele tinha um bronzeado escuro e as mãos eram marcadas de cicatrizes como as de um velho pescador. O cabelo era preto, como o meu. Seu rosto tinha o mesmo ar taciturno que sempre me fez ser rotulado de rebelde. Mas os olhos, verde-mar como os meus, eram rodeados de rugas que me diziam que ele também sorria muito. Os deuses não estavam se movendo nem falando, mas havia tensão no ar, como se tivessem acabado de discutir. Aproximei-me do trono do pescador e me ajoelhei aos seus pés.
– Pai.
Não ousei olhar para cima. Meu coração estava disparado, eu podia sentir a energia que emanava dos dois deuses. Se eu dissesse a coisa errada, não havia dúvida de que eles poderiam me reduzir a pó. A minha esquerda, Zeus falou:
– Você não deveria se dirigir primeiro ao senhor desta casa, menino? – Mantive a cabeça baixa e esperei.
– Paz, irmão – disse por fim Poseidon. Sua voz mexeu com as minhas lembranças mais antigas: aquela sensação morna de que me lembrava, de quando eu era bebê, a sensação da sua mão de deus sobre a minha testa. – O menino submete-se ao seu pai. Está certo.
– Então você ainda o reclama como seu? – perguntou Zeus, ameaçadoramente. – Você reclama esta criança que procriou contrariando o nosso sagrado juramento?
– Eu admiti a minha transgressão – disse Poseidon. – E agora vou ouvi-lo falar.
Transgressão. Senti um nó na garganta. Era isso tudo o que eu era? Uma transgressão? O resultado do erro de um deus?
– Eu já o poupei uma vez – resmungou Zeus. – Ousando voar através dos meus domínios... bah! Eu devia tê-lo mandado pelos ares, para fora do céu pelo seu atrevimento.
– E correr o risco de destruir seu próprio raio-mestre? – perguntou Poseidon calmamente. – Vamos ouvi-lo, irmão.
Zeus resmungou mais um pouco.
– Ouvirei – resolveu. – E então decidirei se atirarei ou não este menino para fora do Olimpo.
– Perseu – disse Poseidon. – Olhe para mim.
Fiz isso, e não sei ao certo o que vi no seu rosto. Não havia sinal claro de amor ou aprovação. Nada para me encorajar. Era como olhar para o oceano: em alguns dias, era possível dizer como estava o seu humor. Na maioria dos dias, no entanto, era impossível de ler, misterioso. Tive a sensação de que Poseidon na verdade não sabia o que pensar de mim. Não sabia se estava feliz por ter-me como filho ou não. De um modo estranho, eu estava contente por Poseidon estar tão distante. Se ele tivesse tentado se desculpar, ou dito que me amava, ou mesmo sorrido, teria parecido falso. Como um pai humano, dando alguma desculpa pouco convincente por não estar presente. Eu poderia viver com isso. Afinal, eu mesmo também não estava muito seguro a respeito dele.
– Dirija-se ao Senhor Zeus, menino – disse-me Poseidon. – Conte a ele a sua história.
Então contei tudo a Zeus, exatamente como havia acontecido. Tirei da mochila o cilindro de metal, que começou a fagulhar na presença do Deus do Céu, e o pus aos seus pés. Houve um longo silêncio, quebrado apenas pelo crepitar do fogo no braseiro.
Zeus abriu a palma da sua mão. O raio voou para dentro dela. Quando ele fechou o punho, os pontos metálicos fulguraram com eletricidade, até ele ficar segurando o que parecia mais um relâmpago clássico, um dardo de seis metros feito de energia com centelhas chiantes que fez os meus cabelos se eriçarem.
– Sinto que o menino diz a verdade – murmurou Zeus. – Mas não é nada típico de Ares fazer uma coisa assim.
– Ele é orgulhoso e impulsivo – disse Poseidon. – É coisa de família.
– Senhor? – chamei. Ambos disseram:
– Sim?
– Ares não agiu sozinho. Outra pessoa – ou outra coisa teve a ideia.
Descrevi os meus sonhos e a sensação que tive na praia, o momentâneo hálito do mal que parecera parar o mundo e fizera Ares desistir de me matar.
– Nos meus sonhos – disse eu – a voz me disse para levar o raio ao Mundo Inferior. Ares insinuou que também estava tendo sonhos. Acho que ele estava sendo usado, assim como eu, para começar uma guerra.
– Você está acusando Hades, afinal? – perguntou Zeus.
– Não – disse eu. – Quer dizer, Senhor Zeus, eu estive na presença de Hades. A sensação na praia foi diferente. Era a mesma coisa que senti quando cheguei perto daquele abismo. Aquela era entrada para o Tártaro, não era? Alguma coisa poderosa e maligna está se agitando lá embaixo... alguma coisa ainda mais antiga que os deuses.
Poseidon e Zeus se entreolharam. Eles tiveram uma rápida e intensa discussão em grego antigo. Só peguei uma palavra. Pai. Poseidon fez algum tipo de sugestão, mas Zeus o cortou. Poseidon tentou discutir. Zeus ergueu a mão, zangado.
– Não vamos mais falar disso – disse Zeus. – Preciso ir pessoalmente purificar este raio nas águas de Lemnos, para remover a mácula humana do seu metal. – Ele se levantou e olhou para mim. Sua expressão se suavizou uma fração de um grau. – Você me prestou um serviço, menino. Poucos heróis poderiam ter conseguido tanto.
– Eu tive ajuda, senhor – disse eu. – Grover Underwood e Annabeth Chase...
– Para demonstrar minha gratidão, pouparei sua vida. Não confio em você, Perseu Jackson. Não gosto do que a sua chegada significa para o futuro do Olimpo. Mas, em nome da paz na família, eu o deixarei viver.
– Ahn... obrigado, senhor.
– Não ouse voar de novo. Não me deixe encontrá-lo aqui quando eu voltar. Ou irá provar este raio. E será a sua última sensação.
Um trovão sacudiu o palácio. Com um clarão ofuscante, Zeus se foi. Eu estava sozinho na sala do trono com meu pai.
– O seu tio – suspirou Poseidon – sempre teve um talento especial para saídas teatrais. Acho que ele teria se saído bem como o deus do teatro.
Um silêncio constrangedor.
– Senhor – disse eu – o que havia naquele abismo?
Poseidon olhou atentamente para mim.
– Você não adivinhou?
– Cronos – disse eu. – O rei dos Titãs.
Mesmo na sala do trono do Olimpo, longe do Tártaro, o nome Cronos escureceu o ambiente, e fez o fogo no braseiro não parecer mais tão quente nas minhas costas. Poseidon segurou o seu tridente.
– Na Primeira Guerra Mundial, Percy, Zeus cortou o nosso pai Cronos em mil pedaços, exatamente como Cronos fizera com seu próprio pai, Urano. Zeus lançou os restos de Cronos no mais escuro abismo do Tártaro. O exército dos Titãs foi dispersado, sua fortaleza na montanha sobre o Etna, destruída, seus monstruosos aliados foram expulsos para os cantos mais distantes da Terra. E, contudo, Titãs não podem morrer, não mais que nós, deuses. O que resta de Cronos ainda vive de algum modo hediondo, ainda consciente em seu sofrimento eterno, ainda com fome de poder.
– Ele está se curando – disse eu. – Ele vai voltar.
Poseidon sacudiu a cabeça.
– De tempos em tempos, no decorrer das eras, Cronos se agita. Ele entra nos pesadelos dos homens e exala pensamentos malignos. Desperta monstros inquietos das profundezas. Mas sugerir que ele pode erguer-se do abismo é outra coisa.
– É o que ele pretende, pai. É o que ele disse.
Poseidon ficou em silêncio por um bom tempo.
– O Senhor Zeus encerrou a discussão sobre o assunto. Ele não permitirá que se fale de Cronos. Você completou a sua missão, criança. É tudo o que precisa fazer.
– Mas... – eu me interrompi. Discutir não iria adiantar nada. Muito possivelmente, irritaria o único deus que eu tinha do meu lado. – Como... como queira, pai.
Um leve sorriso brincou nos lábios dele.
– A obediência não lhe vem naturalmente, não é?
– Não... senhor.
– Devo ter alguma culpa por isso, imagino. O mar não gosta de ser contido. – Ele se ergueu em toda a sua altura e pegou seu tridente. Então tremeluziu e ficou do tamanho de um homem normal, em pé diante de mim. – Você precisa ir, criança. Mas primeiro saiba que sua mãe retornou.
Olhei para ele, completamente perplexo.
– Minha mãe?
– Você a encontrará em casa. Hades a enviou quando recuperou seu elmo. Até mesmo o Senhor da Morte paga as suas dívidas.
Meu coração disparou. Eu mal podia acreditar.
– Você... você vai...
Eu queria perguntar se Poseidon viria comigo para vê-la, mas então percebi que isso era ridículo. Imaginei-me embarcando com o Deus do Mar em um táxi e levando-o para o Upper East Side. Se durante todos aqueles anos ele tivesse desejado ver minha mãe, teria visto. E também era preciso pensar que Gabe Cheiroso estava lá. Os olhos de Poseidon ficaram um pouco tristes.
– Quando você voltar para casa, Percy, precisará fazer uma escolha importante. Irá encontrar um pacote esperando por você no seu quarto.
– Um pacote?
– Você entenderá quando o vir. Ninguém pode escolher o seu caminho, Percy. Você terá de decidir.
Assenti, embora sem saber o que ele queria dizer.
– Sua mãe é uma rainha entre as mulheres – disse Poseidon saudosamente. – Não conheci nenhuma mulher mortal como ela em mil anos. Ainda assim... sinto muito por você ter nascido, criança. Eu trouxe para você um destino de herói, e um destino de herói nunca é feliz. Não passa de um destino trágico.
Tentei não me sentir magoado. Ali estava o meu próprio pai, dizendo que sentia muito por eu ter nascido.
– Eu não me importo, pai.
– Ainda não, talvez – disse ele. – Ainda não. Mas foi um erro imperdoável da minha parte.
– Vou deixá-lo, então. – Eu me inclinei, desajeitado. – Não... não vou incomodá-lo de novo.
Eu estava a cinco passos de distância quando ele chamou:
– Perseu. – Eu me virei. Havia uma luz diferente em seus olhos, um tipo flamejante de orgulho. – Você se saiu bem, Perseu. Não me entenda mal. O que quer que ainda faça, saiba que você é meu. Você é um verdadeiro filho do Deus do Mar.
Enquanto eu caminhava de volta pela cidade dos deuses, as conversas se interromperam. As musas pararam seu concerto. Pessoas, sátiros e náiades, todos se voltavam para mim, os rostos plenos de respeito e gratidão, e quando eu passava eles se ajoelhavam, como se eu fosse algum tipo de herói.


Quinze minutos depois, ainda em transe, eu estava de volta às ruas de Manhattan. Peguei um táxi para o apartamento da minha mãe, toquei a campainha, e lá estava ela – minha linda mãe, cheirando a hortelã e alcaçuz, e o cansaço e a preocupação se evaporaram do seu rosto assim que ela me viu. – Percy! Oh, graças a Deus! Oh, meu querido.
Ela me apertou até não poder mais. Ficamos no vestíbulo enquanto ela chorava e passava as mãos pelos meus cabelos. Eu admito – meus olhos também ficaram um pouco nublados. Eu tremia, de tão aliviado que estava por vê-la. Ela me contou que simplesmente aparecera no apartamento naquela manhã, deixando Gabe meio fora de si de tão apavorado. Não se lembrava de nada desde o Minotauro, e não pôde acreditar quando Gabe lhe disse que eu era um criminoso procurado, viajando pelo país e explodindo monumentos nacionais. Ficara louca de preocupação o dia inteiro porque não ouvira as notícias. Gabe a forçara a ir trabalhar, dizendo que ela precisava um mês de salário para compensar, e era melhor começar. Engoli a raiva e contei-lhe minha própria história. Tentei fazer que parecesse menos apavorante do que fora, mas não era fácil. Estava justamente chegando à luta com Ares quando a voz de Gabe irrompeu da sala de estar.
– Ei, Sally! Aquele bolo de carne já está pronto ou não?
Ela fechou os olhos.
– Ele não vai ficar muito feliz em vê-lo, Percy. A loja recebeu um milhão de telefonemas de Los Angeles hoje... alguma coisa sobre eletrodomésticos grátis. – Ah, sim. Quanto a isso...
Ela conseguiu sorrir fracamente.
– Só não o deixe ainda mais zangado, certo? Venha.
No mês em que estive fora, o apartamento se transformara em Gabelândia. Havia lixo no tapete até a altura dos tornozelos. O sofá tinha sido estofado de novo com latas de cerveja. Meias e roupas de baixo sujas estavam penduradas nos abajures. Gabe e três dos seus amigos cretinos estavam sentados à mesa jogando pôquer. Quando Gabe me viu, o charuto caiu da boca. A cara dele ficou mais vermelha que lava.
– Você é muito descarado de vir aqui, seu pequeno punk. Eu pensei que a polícia...
– Ele não é um fugitivo, afinal – interrompeu minha mãe. – Não é maravilhoso, Gabe?
Gabe olhou para um lado e para outro entre nós. Não parecia achar que a minha volta para casa fosse assim tão maravilhosa.
– Já não basta ter de devolver o dinheiro do seu seguro de vida, Sally – rosnou ele. – Me dê o telefone. Vou chamar a polícia.
– Gabe, não!
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Você disse não! Acha que eu vou ter de aguentar esse punk de novo? Ainda posso registrar queixa contra ele por destruir o meu Camaro.
– Mas...
Ele levantou a mão e minha mãe se encolheu. Pela primeira vez me dei conta de uma coisa. Gabe já tinha batido na minha mãe. Não sei quando, nem quanto. Talvez estivesse acontecendo há anos, quando eu não estava por perto. Um balão de raiva começou a se expandir no meu peito. Avencei para Gabe, instintivamente tirando minha caneta do bolso. Ele apenas riu.
– O que foi, punk? Vai escrever em mim? Encoste em mim, e irá para a cadeia para sempre, entendeu?
– Ei, Gabe – seu amigo Eddie interrompeu. – Ele é só uma criança.
Gabe olhou para ele irritado e macaqueou em voz de falsete:
– Ele é só uma criança! – Seus outros amigos riram como idiotas. – Eu vou ser bonzinho com você, punk. – Gabe mostrou os dentes manchados de tabaco. – Vou lhe dar cinco minutos para pegar suas coisas e dar o fora. Depois disso, chamo a polícia.
– Gabe! – implorou minha mãe.
– Ele fugiu – disse Gabe a ela. – Que continue fugido.
Eu estava sentindo uma comichão para destampar Contracorrente, mas mesmo que fizesse isso, a lâmina não podia ferir seres humanos. E Gabe, segundo a mais vaga das definições, era um ser humano. Minha mãe segurou meu braço.
– Por favor, Percy. Venha. Vamos para o seu quarto.
Deixei que ela me puxasse, as mãos ainda tremendo de raiva. Meu quarto tinha sido completamente abarrotado com o lixo de Gabe. Havia pilhas de baterias velhas de carro, um buquê apodrecido de flores de solidariedade com um cartão de alguém que assistira sua entrevista com Barbara Walters.
– Gabe está apenas chateado, querido – disse minha mãe. – Vou falar com ele mais tarde. Tenho certeza de que vai dar certo.
– Mamãe, nunca vai dar certo. Não enquanto Gabe estiver aqui.
Ela torceu as mãos nervosamente.
– Eu posso... vou levar você comigo para o trabalho durante o resto do verão. No outono talvez haja algum outro internato...
– Mamãe.
Ela baixou os olhos.
– Estou tentando, Percy. Eu só... só preciso de algum tempo.
Um pacote apareceu em cima da minha cama. Pelo menos, eu poderia jurar que não estava lá um momento antes. Era uma caixa de papelão surrada mais ou menos do tamanho certo para conter uma bola de basquete. O endereço na etiqueta estava na minha própria caligrafia:

Aos deuses
Monte Olimpo, 600° andar
Edifício Empire State
Nova York, NY
Com os melhores votos, Percy Jackson

No topo da caixa, em marcador preto, na caligrafia clara e forte de um homem, estava o endereço do nosso apartamento, e as palavras: RETORNAR AO REMETENTE. De repente entendi o que Poseidon me dissera no Olimpo. Um pacote. Uma decisão. O que quer que ainda faça, saiba que você é meu. Você é um verdadeiro filho do Deus do Mar. Olhei para a minha mãe.
– Mãe, você quer se livrar do Gabe?
– Percy, não é tão simples. Eu...
– Mãe, apenas me diga. Aquele cretino está batendo em você. Você quer que ele se vá ou não?
Ela hesitou, depois assentiu quase imperceptivelmente.
– Sim, Percy. Eu quero. E estou tentando reunir coragem para dizer a ele. Mas você não pode fazer isso por mim. Você não pode resolver os meus problemas.
Eu olhei para a caixa. Eu podia resolver o problema dela. Queria abrir aquele pacote, botá-lo sobre a mesa de pôquer e tirar o que havia dentro. Podia começar o meu próprio jardim de estátuas bem ali na sala de estar. E o que um herói grego faria nas histórias, pensei. É o que Gabe merece. Mas a história de um herói sempre termina em tragédia. Poseidon me dissera isso. Lembrei-me do Mundo Inferior. Pensei no espírito de Gabe à deriva nos Campos de Asfódelos, ou condenado a alguma tortura horrível atrás do arame farpado dos Campos da Punição – sentado em um eterno jogo de pôquer, mergulhado até a cintura em óleo fervente ou ouvindo música de ópera. Será que eu tinha o direito de mandar alguém para lá? Mesmo Gabe? Um mês atrás, eu não teria hesitado. Agora...
– Eu posso fazer isso – disse à minha mãe. – Uma espiada para o que há dentro desta caixa, e ele nunca mais a incomodará de novo.
Ela deu uma olhada para o pacote e pareceu entender imediatamente.
– Não, Percy – disse ela afastando-se. – Você não pode.
– Poseidon chamou você de rainha – contei-lhe. – Ele disse que não conheceu nenhuma mulher como você em mil anos.
Suas faces coraram.
– Percy...
– Você merece coisa melhor do que isso, mãe. Você devia ir para a faculdade, tirar o seu diploma. Podia escrever o seu romance, conhecer um cara legal, quem sabe, e viver numa bela casa. Você não precisa mais me proteger ficando com Gabe, Deixe que eu me livre dele.
Ela enxugou uma lágrima do rosto.
– Você se parece tanto com o seu pai – disse ela. – Uma vez propôs parar a maré por mim. Propôs construir um palácio para mim no fundo do mar, achava que podia resolver todos os meus problemas com um aceno de mão.
– O que há de errado nisso?
Seus olhos multicoloridos pareceram investigar dentro de mim.
– Eu acho que você sabe, Percy, Eu acho que você é parecido o bastante comigo para entender. Se é para a minha vida ter algum significado, tenho de vivê-la eu mesma. Não posso deixar que um deus cuide de mim... ou meu filho, Eu preciso... encontrar a coragem sozinha, a sua missão me fez lembrar disso.
Ouvimos o som das fichas de pôquer e pragas, e a ESPN n televisão da sala de estar.
– Vou deixar a caixa – disse eu – se ele a ameaçar...
Ela empalideceu, mas assentiu.
– Aonde você vai, Percy?
– Colina Meio-Sangue.
– Passar o verão... ou para sempre?
– Ainda não sei.
Nossos olhos se encontraram, e eu senti que tínhamos um acordo. Veríamos como estariam as coisas no fim do verão. Ele beijou a minha testa.
– Você será um herói, Percy, o maior de todos. Passei os olhos pelo quarto pela última vez, tinha a sensação de que nunca mais o veria de novo. Então fui com minha mãe até a porta da frente.
– Indo embora tão cedo, punk? – gritou Gabe atrás de mim. – Já vai tarde!
Senti uma última ponta de dúvida. Como eu podia rejeitar a oportunidade perfeita para me vingar dele? Eu estava indo embora daqui sem salvar a minha mãe.
– Ei, Sally! – berrou ele. – E aquele bolo de carne, hein? Uma expressão de raiva, dura como aço, brilhou nos olhos da minha mãe, e eu pensei, quem sabe, talvez eu a estivesse deixando em boas mãos afinal: as dela mesma.
– O bolo de carne já está saindo, meu bem – disse ela a Gabe. – Um bolo de carne surpresa.
Olhou para mim e piscou. A última coisa que vi quando a porta se fechou foi minha mãe olhando para Gabe com jeito de quem imagina que ele daria uma ótima estátua de jardim.

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