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O Ladrão de Raios - CAP. 16

.. sábado, 16 de março de 2013

Capítulo 16 - A ida de uma zebra para Las Vegas

O deus da guerra nos esperava no estacionamento do restaurante.

– Bem, bem – disse ele. – Você conseguiu não ser morto.
– Você sabia que era uma armadilha – retruquei.
Ares me deu um sorriso malvado.
– Aposto que aquele ferreiro aleijado ficou surpreso quando pegou na rede um par de crianças estúpidas. Você ficou bem na tevê.
Empurrei o escudo para ele.
– Você é um imbecil.
Annabeth e Grover pararam de respirar.
Ares agarrou o escudo e o girou no ar como massa de pizza. O escudo mudou de forma, transformando-se em um colete à prova de balas. Ele o pendurou nas costas.
– Estão vendo aquele caminhão logo ali? – Apontou um caminhão de dezoito rodas estacionado do outro lado da rua. – É a carona de vocês. Vai levá-los direto a Los Angeles, com uma parada em Vegas.
O caminhão tinha uma placa na parte de trás, que eu só pude ler porque estava pintada ao contrário, em branco sobre preto, uma boa combinação para a dislexia: CARIDADE INTERNACIONAL: TRANSPORTE HUMANITÁRIO DE ZOOLÓGICO. CUIDADO: ANIMAIS SELVAGENS VIVOS
Eu disse:
– Fala sério!
Ares estalou os dedos. A porta traseira do caminhão se destrancou.
– Carona grátis para oeste, imprestável. Pare de reclamar. E aqui está uma coisinha por ter feito o serviço.
Ele suspendeu uma mochila de náilon azul do seu guidom e a jogou para mim.
Dentro havia roupas limpas para todos nós, vinte dólares em dinheiro, uma bolsa cheia de dracmas de ouro e uma embalagem de biscoito Oreo recheado.
Eu disse:
– Não quero a porcaria do seu...
– Obrigado, Senhor Ares – interrompeu Grover, me fuzilando com seu melhor olhar de alerta vermelho. – Muito obrigado.
Rangi os dentes. Devia ser um insulto mortal recusar algo de um deus, mas eu não queria nada que Ares tivesse tocado. Pendurei a mochila no ombro relutante. Sabia que minha raiva era causada pela presença do deus da guerra, mas ainda sentia uma vontadezinha de lhe dar um murro no nariz. Ele me lembrou de todos os valentões que já havia enfrentado: Nancy Bobofit, Clarisse, Gabe Cheiroso, professores debochados – todos os imbecis que me chamaram de estúpido na escola ou riram de mim quando fui expulso.
Olhei para o restaurante atrás de mim, que tinha agora apenas um ou dois clientes. A garçonete que nos servira o jantar olhava, nervosa, pela janela, como se tivesse medo de que Ares nos machucasse. Ela arrastou o cozinheiro de dentro da cozinha para ver. Disse algo a ele. Ele assentiu, ergueu uma pequena câmera descartável e tirou uma foto de nós.
Boa, pensei. Amanhã vamos estar de novo nos jornais.
Imaginei a manchete: CRIMINOSO DE DOZE ANOS ESPANCA MOTOCICLISTA INDEFESO.
– Você me deve mais uma coisa – disse a Ares, tentando manter o volume de minha voz. – Você me prometeu informações sobre minha mãe.
– Tem certeza de que é capaz de suportar a notícia? – Ele deu a partida no pedal da moto. – Ela não está morta.
O chão pareceu girar embaixo de mim.
– O que quer dizer?
– Quero dizer que ela foi levada pelo Minotauro antes de morrer. Foi transformada em uma chuva de ouro, certo? Isso é metamorfose. Não morte. Ela está sendo mantida presa.
– Presa. Por quê?
– Você precisa estudar guerra, coisinha imprestável. Reféns. Você prende alguém para controlar outro alguém.
– Ninguém está me controlando.
Ele riu.
– Ah, não? A gente se vê por aí, garoto.
Cerrei os punhos.
– Você é bem convencido, Senhor Ares, para um cara que foge de estátuas de Cupido.
Atrás dos óculos escuros, o fogo brilhou. Senti um vento quente nos cabelos.
– Nós nos encontraremos novamente, Percy Jackson. Na próxima vez em que estiver numa briga, cuide de sua retaguarda.
– Isso não foi muito inteligente, Percy.
– Não estou nem aí.
– Você não quer um deus como inimigo. Especialmente esse deus.
– Ei, gente – disse Grover. – Detesto interromper, mas...
Ele apontou na direção do restaurante. No caixa, os dois últimos clientes estavam pagando suas contas, dois homens de macacões pretos idênticos, com uma logomarca branca nas costas que combinava com a do caminhão da CARIDADE INTERNACIONAL.
– Se vamos pegar o expresso do zoológico – disse Grover – precisamos nos
apressar.
Eu não tinha gostado daquilo, mas não havia opção melhor. Além disso, já tinha visto o suficiente de Denver.
Atravessamos a rua correndo e subimos na traseira do veículo enorme, fechando as portas atrás de nós.


A primeira coisa que percebi foi o cheiro. Era como a maior caixa de areia para cocô de gato do mundo. O interior da carreta estava escuro até eu tirar a tampa de Anaklusmos. A lâmina lançou uma leve luz de bronze sobre uma cena muito triste. Em uma fileira de jaulas metálicas imundas havia três dos mais patéticos animais de zoológico que eu já vira: uma zebra, um leão albino e um tipo estranho de antílope, cujo o nome eu não sabia.
Alguém jogara para o leão um saco de nabos que ele obviamente não queria comer. A zebra e o antílope tinham ganhado uma bandeja de isopor de carne de hambúrguer cada um. A crina da zebra estava toda emaranhada em goma de mascar, como se alguém ficasse cuspindo nela nas horas vagas. O antílope tinha um estúpido balão de aniversário amarrado em um dos seus chifres que dizia PASSEI DA IDADE!
Tudo indicava que ninguém quisera chegar perto o bastante do leão para mexer com ele, mas o pobre andava de um lado para outro em cima de cobertores sujos, em um espaço que era mais do que muito pequeno para ele, arfando com o ar abafado da carreta.
Moscas zumbiam em volta de seus olhos cor-de-rosa, e as costelas apareciam no pelo branco.
– Isso é caridade? – gritou Grover. – Transporte humanitário de zoológico?
Ele provavelmente teria saído de volta para bater nos caminhoneiros com suas flautas de bambu, e eu o teria ajudado, mas bem naquele momento o motor roncou, a carreta começou a chacoalhar e fomos forçados a nos sentar ou cair.
Nós nos amontoamos no canto em cima de alguns sacos de ração embolorados, tentando ignorar o cheiro, o calor e as moscas. Grover falou com os animais em uma série de balidos de bode, mas eles apenas olharam tristemente para ele. Annabeth era a favor de arrombar as jaulas e soltá-los ali mesmo, mas argumentei que isso não ia adiantar muito até o caminhão parar de se mover. Além disso, tinha a sensação de que, para o leão, poderíamos parecer bem mais apetitosos do que aqueles nabos.
Achei um jarro de água e reabasteci as tigelas deles, depois usei Anaklusmos para puxar os alimentos trocados para fora das jaulas. Dei a carne ao leão e os nabos para a zebra e o antílope.
Grover acalmou o antílope enquanto Annabeth usava sua faca para tirar o balão preso ao chifre. Pensou também em cortar a goma de mascar da crina da zebra, mas concluímos que seria muito arriscado com o caminhão aos solavancos. Pedimos a Grover para prometer aos animais que os ajudaríamos mais pela manhã, e então nos acomodamos para a noite.
Grover se enrodilhou sobre um saco de nabos; Annabeth abriu nosso pacote de Oreos e mordiscou um deles sem muito entusiasmo, tentei ficar animado com a ideia de que estávamos a meio caminho de Los Angeles. Próximo de nosso destino. Ainda era 14 de junho. O solstício só aconteceria no dia 21. Tínhamos tempo de sobra.
Por outro lado, não tinha ideia do que nos esperava. Os deuses estavam brincando comigo. Pelo menos Hefesto teve a decência de ser honesto quanto a isso – instalou câmeras e me anunciou como entretenimento. Mas até quando não havia câmeras filmando eu tinha a sensação de que a minha missão estava sendo observada. Eu era uma fonte de diversão para os deuses.
– Ei – disse Annabeth. – Sinto muito por ter me apavorado lá no parque aquático, Percy.
– Tudo bem.
– É só que... – Ela estremeceu. – Aranhas.
– Por causa da história de Aracne – adivinhei. – Ela foi transformada em aranha por desafiar sua mãe para uma competição de tecelagem, certo?
Annabeth assentiu.
– Os filhos de Aracne têm se vingado nos filhos de Atena desde então. Se houver uma aranha a um quilômetro de distância de mim, ela me encontrará. Eu odeio aquelas coisinhas rastejantes. De qualquer jeito, lhe devo uma.
– Somos uma equipe, está lembrada? Além disso, Grover fez aquele voo fantástico.
Pensei que estivesse dormindo, mas ele murmurou do seu canto:
– Fui o máximo, não fui?
Annabeth e eu demos risada.
Ela separou as duas partes do biscoito recheado e me deu uma.
– Na mensagem de Íris... Luke realmente não disse nada?
Mastiguei meu biscoito e pensei em como responder. A conversa via arco-íris me incomodara a noite toda.
– Luke disse que você e ele se conhecem há muito. Também disse que Grover não iria fracassar dessa vez. Ninguém seria transformado em pinheiro.
Na pálida luz de bronze da lâmina da espada, era difícil ler a expressão deles.
Grover soltou um balido lamentoso.
– Eu devia ter contado a verdade a você desde o começo. – Sua voz tremia. – Pensei que, se soubesse o fracasso que eu era, não iria querer que eu viesse junto.
– Você era o sátiro que tentou salvar Thalia, a filha de Zeus.
Ele assentiu, com tristeza.
– E os outros dois meios-sangues que Thalia protegeu, os que chegaram ao acampamento em segurança... – Olhei para Annabeth. – Eram você e Luke, não é?
Ela pôs seu biscoito de lado, intocado.
– Como você disse, Percy, uma meio-sangue de sete anos de idade não teria chegado muito longe sozinha. Atena me guiou até a ajuda. Thalia tinha doze anos. Luke, catorze. Os dois haviam fugido de casa, como eu. Ficaram contentes em me levar com eles. Eram... fantásticos combatentes de monstros, mesmo sem treino. Viajamos da Virgínia para o norte sem nenhum plano de verdade, nos defendemos dos monstros por cerca de duas semanas antes de Grover nos encontrar.
– Eu devia escoltar Thalia até o acampamento – disse ele, fungando – somente Thalia. Tinha ordens estritas de Quíron: não faça nada que atrase o resgate. Sabíamos que Hades estava atrás dela, entende, mas eu não podia simplesmente abandonar Luke e Annabeth. Achei... achei que conseguiria levar todos os três até um lugar seguro. Foi minha culpa as Benevolentes nos alcançarem. Eu fiquei paralisado. Fiquei apavorado no caminho de volta ao acampamento e peguei alguns desvios errados. Se tivesse sido um pouco mais rápido...
– Pare com isso – disse Annabeth. – Ninguém culpa você. Thalia também não o culpou.
– Ela se sacrificou para nos salvar – disse ele, desconsolado. – Sou culpado pela morte dela. O Conselho dos Anciãos de Casco Fendido disse isso.
– Porque você não deixou outros dois meios-sangues para trás? – disse eu. – Isso não é justo.
– Percy tem razão – disse Annabeth. – Eu não estaria aqui hoje se não fosse por você, Grover. Nem Luke. Não estamos nem aí para o que diz o conselho.
Grover continuou fungando no escuro.
– É a minha sina. Sou o mais fraco dos sátiros, e encontro os dois meios-sangues mais poderosos do século, Thalia e Percy.
– Você não é fraco – insistiu Annabeth. – Tem mais coragem do que qualquer sátiro que já conheci. Cite outro que se atreveria a ir para o Mundo Inferior. Aposto que Percy está muito contente por você estar aqui agora.
Ela me chutou na canela.
– Sim – falei, o que teria feito mesmo sem o chute. – Não foi por sina que você encontrou Thalia e eu, Grover. Você tem o maior coração entre todos os sátiros. Você é um buscador natural. E você é quem vai achar Pan.
Ouvi um suspiro profundo e satisfeito. Esperei que Grover dissesse algo, mas sua respiração só ficou mais pesada. Quando o som se transformou em ronco, percebi que ele tinha caído no sono.
– Como ele faz isso? – maravilhei-me.
– Não sei – disse Annabeth. – Mas foi realmente legal o que você disse a ele.
– Eu fui sincero.
Viajamos em silêncio por alguns quilômetros, sacudindo acima dos sacos de ração. A zebra mascou um nabo. O leão lambeu o que restara da carne de hambúrguer dos lábios e olhou para mim esperançoso.
Annabeth esfregou seu colar como se estivesse bolando grandes estratégias.
– Essa conta do pinheiro — disse eu. — É do seu primeiro ano?
Ela olhou. Não havia percebido o que estava fazendo.
– É – falou. – Todo mês de agosto os conselheiro escolhem o evento mais importante do verão, e o pintam nas contas daquele ano. Eu fiquei com o pinheiro de Thalia, uma trirreme grega em chamas, um centauro vestido para um baile... bem, aquele foi um verão estranho...
– E o anel de formatura é do seu pai?
– Isso não é da sua... – Ela se interrompeu. – Sim. Sim, é.
– Você não precisa me contar.
– Não... tudo bem. – Ela respirou fundo, vacilante. – Meu pai o mandou para mim dentro de uma carta, há dois verões. O anel era, bem, sua maior recordação de Atena. Ele não teria conseguido terminar o doutorado em Harvard sem ela... É uma longa história. De qualquer modo, ele disse que queria que eu ficasse com o anel. Desculpou-se por ser um idiota, disse que me amava e sentia saudades de mim. Queria que eu fosse para casa.
– Isso não parece tão ruim assim.
– É, mas... o problema é que eu acreditei nele. Tentei ir para casa naquele ano escolar, mas minha madrasta era a mesma de sempre. Não queria ver seus filhos em perigo por viver com uma aberração. Monstros atacavam. A gente brigava. Não aguentei nem mesmo até as férias inverno. Chamei Quíron e voltei direto para o Acampamento Meio-Sangue.
– Você acha que vai tentar viver com seu pai de novo?
Ela não me olhou nos olhos.
– Por favor. Não estou a fim de me autoflagelar.
– Você não devia desistir – falei. – Devia lhe escrever uma carta, ou coisa assim.
– Obrigada pelo conselho – disse ela, friamente – mas meu pai escolheu com quem quer viver. Passamos mais alguns quilômetros em silêncio.
– Então, se os deuses brigarem – falei – as coisas vão ficar como na Guerra de
Tróia? Será Atena contra Poseidon?
Ela encostou a cabeça na mochila que Ares nos dera e fechou olhos.
– Não sei o que a minha mãe vai fazer. Só sei que vou lutar junto com você.
– Por quê?
– Porque você é meu amigo, cabeça de alga. Mais alguma pergunta boba?
Não consegui pensar em uma resposta para aquilo. Felizmente, não precisei. Annabeth estava dormindo.
Tive dificuldade em seguir o exemplo dela, com Grover roncando e um leão albino me olhando com ar esfomeado, mas por fim fechei os olhos.


Meu pesadelo começou como um milhão de vezes antes: eu sendo forçado a fazer um teste usando uma camisa de força. Todas as outras crianças estavam saindo para o recreio, e o professor dizendo: Vamos, Percy. Você não é burro, não é? Pegue seu lápis.
Então o sonho tomou um rumo diferente.
Olhei para a carteira ao lado e vi uma menina sentada, que também usava uma camisa de força. Tinha a minha idade, com um cabelo preto rebelde, estilo punk, delineador escuro em volta dos olhos verdes tempestuosos, e sardas no nariz. De algum modo, eu sabia quem era. Thalia, filha de Zeus.
Ela se debateu na camisa de força, olhou para mim com raiva e frustração, e disparou: E então, cabeça de alga? Um de nós precisa sair daqui.
Ela tem razão, pensei no sonho. Vou voltar para aquela caverna. Vou dizer o que penso na cara de Hades.
A camisa de força se dissolveu e fiquei livre. Caí através do piso da sala de aula. A voz do professor mudou até ficar fria e maligna, ecoando das profundezas de um grande abismo.
Percy Jackson, disse. Sim, a troca foi bem, estou vendo.
Eu estava novamente na caverna escura, com os espíritos dos mortos flutuando à minha volta. De dentro do poço, sem ser vista, a coisa monstruosa falava, mas não se dirigia a mim. O poder entorpecedor de sua voz parecia dirigir-se a outro lugar.
E ele não suspeita de nada? perguntou.
Outra voz, uma que quase reconheci, respondeu junto ao meu ombro:
Nada, meu senhor. Ele é tão ignorante quanto o resto.
Ohei, mas não havia ninguém lá. Quem falara estava invisível.
Mentira em cima de mentira, refletiu em voz alta a coisa no poço. Excelente. Na verdade, meu senhor, disse a voz ao meu lado, o nome O Trapaceiro lhe foi muito bem aplicado, mas aquilo foi de fato necessário? Eu poderia ter trazido o que roubei diretamente para o senhor...
Você?, escarneceu o monstro. Você já mostrou seus limites. Teria falhado completamente sem minha intervenção.
Mas, meu senhor...
Por favor, pequeno servo. Nossos seis meses nos renderam muito. A ira de Zeus cresceu. Poseidon jogou sua cartada mais desesperada. Agora devemos usá-la contra ele. Logo você terá a recompensa que deseja, e sua vingança. E assim que ambos os itens forem entregues em minhas mãos... mas espere. Ele está aqui.
O quê?
O servo invisível de repente pareceu tenso.
Acaso o convocou, meu senhor?
Não.
Toda a força da atenção do monstro agora se despejava sobre mim, paralisando-me.
Maldito seja o sangue de seu pai — ele é inconstante demais, imprevisível demais. O menino trouxe a si mesmo para cá.
Impossível!, exclamou o servo.
Para alguém fraco como você, talvez, rosnou a voz. Depois sua força gélida se voltou de novo para mim. Então... você quer sonhar com sua missão, meio-sangue? Pois vou atendê-lo.
O cenário mudou.
Eu estava numa vasta sala com um trono, com paredes de mármore negro e piso de bronze. O horripilante trono vazio era feito de ossos humanos fundidos. Postada ao pé do degrau estava minha mãe, uma estátua de luz dourada tremeluzente, os braços estendidos.
Tentei avançar em sua direção, mas minhas pernas não se moviam. Estendi a mão para ela, apenas para perceber que minhas mãos haviam murchado até os ossos. Esqueletos sorridentes de armadura grega se juntavam ao meu redor, vestindo-me com mantos de seda, coroando-me com louros que fumegavam com veneno da Quimera, queimando-me o couro cabeludo.
A voz maligna começou a rir.
Vivas ao herói conquistador!


Acordei assustado.
Grover sacudia meu ombro.
– O caminhão parou – disse ele. – Achamos que eles vêm checar os animais.
– Escondam-se! – Annabeth falou baixinho.
Para ela foi fácil. Pôs na cabeça seu boné mágico e desapareceu. Grover e eu tivemos de mergulhar atrás dos sacos de ração e torcer para parecermos dois nabos.
As portas da carreta se abriram com um rangido. A luz e o calor do sol entraram.
– Cara! – disse um dos caminhoneiros, abanando a mão na frente do nariz feio. – Queria estar transportando eletrodomésticos. – Ele trepou para dentro e despejou um pouco d’água nas vasilhas dos animais.
– Com calor, garotão? – perguntou ao leão, e então esvaziou o resto do balde direto na cara do animal. O leão rugiu de indignação.
– Certo, certo, certo – disse o homem.
Ao meu lado, embaixo dos sacos de nabos, Grover se retesou. Para um herbívoro amante da paz, ele parecia absolutamente sanguinário. O caminhoneiro jogou um saco meio esmagado de McLanche Feliz para o antílope. E arreganhou um sorriso para a zebra:
– Tudo em cima, Listradona? Ao menos nos livraremos de você nesta parada. Gosta de shows de mágica? Vai adorar este. Vão serrar você no meio!
A zebra, com os olhos arregalados de medo, olhou diretamente para mim. Não houve som nenhum, mas claro como o dia, eu a ouvi dizer: Liberte-me, senhor. Por favor.
Fiquei perplexo demais para reagir.
Houve um forte toque-toque-toque na lateral da carreta.
O caminhoneiro que estava dentro, conosco, gritou:
– O que você quer, Eddie?
Uma voz do lado de fora – deve ter sido a de Eddie – gritou volta:
– Maurice? O que você disse?
– Por que está batendo?
Toque-toque-toque.
De fora, Eddie gritou:
— Quem está batendo?
O nosso cara, Maurice, revirou os olhos e voltou para fora, xingando Eddie por ser tão idiota.
Um segundo depois, Annabeth apareceu ao meu lado. Devia ser ela quem fez as batidas, para tirar Maurice da carreta. Ela disse:
– Esse negócio de transporte não deve ser legal.
– Mentira? – disse Grover. Ele fez uma pausa, como se estivesse escutando. – O leão diz que esses caras são contrabandistas de animais!
É verdade, disse a voz da zebra dentro da minha cabeça.
– Temos de libertá-los! – disse Grover. Ele e Annabeth olharam para mim, esperando meu comando.
Eu tinha ouvido a zebra falar, mas não o leão. Por quê? Talvez fosse mais uma deficiência de aprendizado... Será que eu só podia entender zebras? Então pensei: cavalos. O que Annabeth dissera sobre Poseidon criar cavalos? Uma zebra seria próxima o bastante de um cavalo? Será que era por isso que eu podia entendê-la?
A zebra disse: Abra minha jaula, senhor. Por favor. Ficarei bem, depois disso.
A zebra disparou para fora. Virou-se para mim e inclinou a cabeça. Obrigada, senhor.
Grover ergueu as mãos e disse algo a ela em sua fala de bode, como uma bênção. No momento em que Maurice enfiava a cabeça para verificar que barulho era aquele lá dentro, a zebra saltou por cima dele para a rua. Houve berros, gritos e carros buzinando.
Corremos para as portas da carreta a tempo de ver a zebra galopando por uma avenida ladeada por hotéis, cassinos e letreiros de néon. Tínhamos acabado de soltar uma zebra em Las Vegas.
Maurice e Eddie correram atrás dela, com alguns policiais correndo atrás deles e gritando:
– Ei! Vocês precisam de permissão para isso!
– Agora seria um bom momento para dar o fora – disse Annabeth.
– Primeiro os outros animais – disse Grover.
Cortei as trancas com minha espada. Grover ergueu as mãos e falou a mesma bênção de bode que usara para a zebra.
– Boa sorte – disse aos animais. O antílope e o leão dispararam para fora das jaulas e foram juntos para as ruas.
Alguns turistas gritaram. A maioria recuou e tirou fotos, provavelmente pensando que se tratasse de algum tipo de show de um dos cassinos.
– Os animais vão ficar bem? – perguntei a Grover. – Quer dizer, o deserto e tudo...
– Não se preocupe – disse ele. – Eu lhes dei uma bênção de sátiro.
– O que quer dizer isso?
– Quer dizer que chegarão à floresta em segurança – disse ele. – Encontrarão água, comida, sombra, e o que mais precisarem até acharem um lugar seguro para viver.
– Por que você não pode fazer uma oração dessas para nós? – perguntei.
– Só funciona com animais.
– Então só iria afetar Percy – ponderou Annabeth.
– Ei! – protestei.
– Brincadeirinha – disse ela. – Venha. Vamos sair desse caminhão imundo.
Cambaleamos para fora, para a tarde do deserto. Fazia quarenta e três graus, fácil, e devíamos estar parecendo vagabundos fritos, mas todos estavam interessados demais nos animais selvagens para prestar muita atenção em nós.
Passamos pelo Monte Carlo e pela MGM. Passamos por pirâmides, por um navio pirata e pela Estátua da Liberdade, que era uma réplica bem pequena, mas ainda assim me deixou com saudades de casa.
Não sabia muito bem o que estávamos procurando. Talvez apenas um lugar para fugir do calor por alguns minutos, achar um sanduíche e um copo de limonada, bolar um novo plano para chegar ao oeste.
Provavelmente, entramos numa rua errada, pois chegamos a um beco sem saída, em frente ao Hotel e Cassino Lótus. A entrada era uma enorme flor de néon, as pétalas acendendo e piscando. Ninguém entrava nem saía, mas as reluzentes portas cromadas estavam abertas, espalhando ar condicionado com cheiro de flores — flor de lótus, quem sabe. Eu nunca cheirara uma, por isso não tinha certeza.
O porteiro sorriu para nós.
– Ei, crianças. Vocês parecem cansados. Querem entrar e sentar?
Tinha aprendido a ser desconfiado, mais ou menos na última semana. Imaginava que qualquer um poderia ser um monstro ou um deus. Não dava para saber. Mas aquele cara era normal. Era só olhar. Além disso, fiquei tão aliviado de ouvir alguém que parecia simpático que assenti e disse que adoraríamos entrar. Dentro, demos uma olhada em volta e Grover disse:
– Uau.
O saguão inteiro era uma sala de jogos gigante. E não estou falando de joguinhos vagabundos como o velho Pac-Man ou os caça-níqueis. Havia um toboágua serpenteando em volta do elevador de vidro, que subia pelo menos quarenta andares.
Havia uma parede de escalada ao lado de um edifício, e uma ponte interna para bungee jump.
Trajes de realidade virtual com pistolas laseres que funcionavam. E centenas de videogames, cada qual do tamanho de uma tevê widescreen. Basicamente, o que você disser, o lugar tinha. Havia algumas outras crianças jogando, mas não muitas. Não havia espera para nenhum dos jogos. Garçonetes e lanchonetes estavam por toda parte, servindo todo tipo de comida que se possa imaginar.
– Ei! – disse um mensageiro. Pelos menos achei que fosse um mensageiro. Usava uma camisa havaiana branca e amarela com desenhos de lótus, short e sandálias de dedo. – Bem-vindos ao Cassino Lótus. Aqui está a chave do seu quarto.
Eu gaguejei:
– Ahn, mas...
– Não, não – disse ele, rindo. –A conta já foi paga. Sem taxas extras, sem gorjetas. Vocês só precisam subir para o último andar, quarto 4001. Se precisarem alguma coisa, como mais espuma para a banheira quente ou alvos para tiro ao prato, ou o que for, é só ligar para a recepção. Aqui estão os seus cartões GranaLótus. Eles funcionam nos restaurantes e em todos os jogos e brinquedos.
Ele entregou a cada um de nós um cartão de crédito de plástico verde. Eu sabia que devia haver algum engano. Obviamente ele pensara que éramos crianças milionárias. Mas peguei o cartão e disse:
– Quanto tem aqui?
Ele juntou as sobrancelhas.
– O que quer dizer?
– Quero dizer quanto temos de crédito?
Ele riu.
– Ah, é uma piada. Ei, legal. Aproveitem sua estada.
Subimos de elevador e conferimos nosso quarto. Era uma suíte com três dormitórios separados e um bar cheio de doces, refrigerantes e salgadinhos. Uma linha direta para o serviço de quarto. Toalhas fofas e camas d'água com travesseiros de penas. Uma televisão enorme com satélite e Internet banda larga. A varanda tinha sua própria banheira quente e, de fato, uma máquina de lançar pratos e uma espingarda – dava para lançar pombos de louça sobre a paisagem de Las Vegas e acertá-los com a espingarda.
Não entendi como aquilo podia ser permitido, mas achei muito legal. A vista para a Vegas Boulevard e o deserto era maravilhosa, muito embora eu duvidasse que teríamos tempo para admirar a paisagem com um quarto como aquele.
– Ah, deuses – disse Annabeth. – Este lugar é...
– Maravilhoso – disse Grover. – Supermaravilhoso.
Havia roupas no armário, e cabiam em mim. Franzi a testa, achando um pouco estranho. Joguei a mochila de Ares na lata de lixo. Não precisaria mais daquilo. Quando fôssemos embora, poderia comprar uma nova loja do hotel.
Tomei um banho, o que foi uma sensação ótima depois de uma semana de viagem suja. Troquei de roupa, comi um saco de salgadinhos, bebi três Cocas e não me sentia tão bem havia muito tempo. Bem no fundo da cabeça, um probleminha me incomodava. Eu tivera um sonho, ou coisa assim... Precisava falar com meus amigos. Mas certamente aquilo podia esperar.
Saí do quarto e vi que Annabeth e Grover também tinham tomado banho e trocado de roupa. Grover estava comendo batatinhas até se fartar, enquanto Annabeth sintonizava o National Geographic Channel.
– Todos esses canais – disse a ela – e você liga no National Geographic. Está maluca?
– É interessante.
– Eu me sinto bem – disse Grover. – Adoro este lugar.
Sem que ele se desse conta, as asas apareceram nos seus tênis e o suspenderam a trinta centímetros do chão, depois o desceram de novo.
– Então, o que fazemos agora? – Perguntou Annabeth. – Dormimos?
Grover e eu nos entreolhamos e sorrimos. Ambos erguemos os nossos cartões GranaLótus de plástico verde.
– Hora do recreio – falei.
Não conseguia me lembrar da última vez em que me divertira tanto. Eu vinha de uma família relativamente pobre. Para nós, esbanjar era comer fora no Burger King e alugar um vídeo. Um hotel cinco estrelas em Vegas? Nem pensar.
Pulei de bungee-jump no saguão cinco ou seis vezes, andei no toboágua, fiz snowboard na rampa de neve artificial, joguei lasertag e atirador de elite do FBI em realidade virtual. Vi Grover algumas vezes, indo de jogo em jogo. Ele tinha gostado mesmo daquela coisa do caçador às avessas — em que os cervos saem e atiram contra os caipiras. Vi Annabeth jogando trívia e outros jogos de cabeçudos. Havia um Sim enorme em 3D, no qual você podia construir sua própria cidade e realmente ver os edifícios holográficos subirem no tabuleiro. Não dei muita importância para esse, mas Annabeth adorou.
Não sei muito bem quando percebi que algo estava errado.
Provavelmente, foi quando reparei no cara que estava em pé ao meu lado no jogo dos atiradores de elite virtuais. Tinha cerca de treze anos, eu acho, mas suas roupas eram esquisitas. Achei que fosse filho de algum dublê do Elvis Presley. Usava jeans boca de sino e uma camiseta vermelha com enfeites pretos, e o cabelo era cacheado e cheio de gel, como o de uma garota de New Jersey em noite de reunião de ex-alunos.
Brincamos juntos no jogo de atiradores, e ele disse:
– Joinha, bicho. Estou aqui há duas semanas e os jogos estão cada vez melhores.
Joinha, bicho?
Mais tarde, enquanto conversávamos, eu disse que alguma coisa era "irada" e ele me olhou meio surpreso, como se nunca tivesse ouvido a palavra ser usada daquele jeito antes.
Disse que seu nome era Darrin, mas assim que comecei a fazer perguntas ele se aborreceu e fez menção de voltar para a tela do computador.
Eu disse:
– Ei, Darrin?
– O quê?
– Em que ano estamos?
Ele franziu a testa para mim.
– No jogo?
– Não. Na vida real.
Ele precisou pensar.
– Mil novecentos e setenta e sete.
– Não – falei, começando a ficar um pouco assustado. – De verdade.
– Ei, bicho. Vibrações ruins. Estou no meio de um jogo.
Depois disso ele me ignorou totalmente. Comecei a falar com as pessoas e descobri que não era fácil.
Elas estavam grudadas na tela da tevê ou no videogame ou no que fosse. Achei um cara que me disse que era 1985. Outro cara me disse que era 1993. Todos alegavam não estar ali há muito tempo, alguns dias, algumas semanas no máximo. Realmente não sabiam, nem se importavam com isso.
Então me ocorreu: havia quanto tempo eu estava ali? Pareciam apenas algumas horas, mas seriam mesmo?
Tentei lembrar por que estávamos ali. Íamos para Los Angeles. Deveríamos encontrar a entrada para o Mundo Inferior. Minha mãe... por um momento apavorante, tive dificuldade de lembrar o nome dela. Sally. Sally Jackson. Eu tinha de encontrá-la. precisava impedir Hades de desencadear a Terceira Guerra Mundial.
Achei Annabeth ainda construindo sua cidade.
– Vamos – disse a ela. – Precisamos sair daqui.
Nenhuma resposta.
– Annabeth?
Ela ergueu os olhos, aborrecida.
– O quê?
– Escute. O Mundo Inferior. A nossa missão!
– Ora, vamos, Percy. Só mais alguns minutos.
– Annabeth, há gente aqui desde 1977. Crianças que nunca cresceram. Quando você entra, fica para sempre.
– E dai? – perguntou ela. – Você pode imaginar lugar melhor?
Agarrei o pulso dela e a arranquei do jogo.
– Ei! – ela gritou e me bateu, mas ninguém sequer se incomodou em olhar. Estavam ocupados demais.
Eu a fiz olhar em meus olhos. Falei:
– Aranhas. Grandes aranhas peludas.
Aquilo mexeu com ela. Sua visão clareou.
– Ah, meus deuses – falou. – Há quanto tempo nós...
– Não sei, mas temos de encontrar Grover.
Saímos à procura dele, e o encontramos ainda jogando Caçador de Cervos Virtual.
– Grover! – gritamos juntos.
Ele disse:
– Morra, ser humano! Morra, pessoa tola e poluente!
– Grover!
Ele apontou a arma de plástico para mim e começou a clicar, como se eu fosse apenas mais uma imagem na tela.
Olhei para Annabeth e juntos pegamos Grover pelos braços e o arrastamos para longe. Os tênis voadores despertaram e começaram a puxar as pernas dele na direção oposta, enquanto ele gritava:
– Não! Acabei de passar de nível! Não!
O mensageiro do Lótus correu até nós.
– E então, estão prontos para os seus cartões platinum?
– Estamos indo embora – disse a ele.
– Que pena – disse ele, e tive a sensação de que ele estava sendo sincero, de que íamos despedaçar seu coração partindo. – Acabamos de anexar um novo andar cheio de jogos para portadores de cartões platinum.
Ele mostrou os cartões, e eu queria um. Sabia que, se pegasse jamais iria embora. Ficaria ali, feliz para sempre, jogando para sempre, e logo esqueceria minha mãe, e minha missão, e talvez até meu próprio nome. Ficaria jogando Atirador Virtual com o bicho-joinha-Darrin-Discoteca para sempre.
Grover estendeu a mão para o cartão, mas Annabeth puxou o braço dele e disse:
– Não, obrigada.
Fomos andando em direção à porta, e quando fizemos isso, o cheiro de comida e os sons dos jogos pareceram ficar mais e mais convidativos. Pensei em nosso quarto lá em cima. Podíamos só passar a noite, dormir em uma cama de verdade para variar...
Então disparamos pelas portas do Cassino Lótus e saímos correndo pela calçada. A sensação era de meio de tarde, mais ou menos a mesma hora que havíamos entrado no cassino, mas algo estava errado. O tempo mudara completamente. Estava tempestuoso, com raios de calor relampejando no deserto.
A mochila de Ares estava pendurada em meu ombro, o que era estranho, pois eu tinha certeza de que a jogara na lata de lixo do quarto 4001. Mas naquele momento eu tinha outros problemas com que me preocupar.
Corri para o jornal mais próximo e li o ano primeiro. Graças aos deuses, era o mesmo ano de quando entramos. Então reparei na data: 20 de junho.
Tínhamos ficado no Cassino Lótus por cinco dias.
Restava-nos só um dia até o solstício de verão. Um dia para completar nossa missão.

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