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O Ladrão de Raios - CAP. 15

.. sábado, 16 de março de 2013

Capítulo 15 - Um deus compra cheeseburguers para nós

Na tarde seguinte, 14 de junho, sete dias antes do solstício, nosso trem entrou em Denver. Não comíamos nada desde a noite anterior no vagão-restaurante, em algum lugar de Kansas. Não tomávamos banho desde que saímos da Colina Meio-Sangue, e eu tinha certeza de que isso era óbvio.

– Vamos tentar entrar em contato com Quíron – disse Annabeth. – Quero contar a ele sobre sua conversa com o espírito do rio.
– Não podemos usar telefones, certo?
– Não estou falando de telefones.
Perambulamos pelo centro da cidade por cerca de meia hora, embora eu não soubesse muito bem o que Annabeth estava procurando. O ar estava seco e quente, o que era estranho depois da umidade de St. Louis. Aonde quer que fôssemos, as Montanhas Rochosas pareciam me olhar, como um tsunami prestes a quebrar sobre a cidade.
Finalmente encontramos um lava-jato vazio. Fomos para o boxe mais afastado da rua, atentos a carros de polícia. Éramos três adolescentes sem automóvel em um lava-jato; qualquer policial que se prezasse deduziria que não estávamos tramando nada de bom.
– O que exatamente estamos fazendo? – perguntei quando Grover pegou a mangueira de um compressor.
– São setenta e cinco centavos – resmungou. Só me restauram duas moedas de vinte e cinco. Annabeth?
– Não olhe para mim – disse ela. – O vagão-restaurante me deixou lisa.
Pesquei o meu último restinho de trocados e passei uma moeda de vinte e cinco centavos para Grover, o que me deixou com cinco e um dracma da Medusa.
– Excelente – disse Grover. – Poderíamos fazer isso com qualquer spray, é claro, mas a conexão não fica boa, e meus braços cansam de tanto bombear.
– Do que está falando?
Ele depositou as moedas e ajustou o botão para ESGUICHO FINO.
– M. I.
– Mensagem instantânea?
– Mensagem de Íris – corrigiu Annabeth. – A deusa do arco-íris transmite mensagens aos deuses. Se a gente souber como pedir, e ela não estiver atarefada demais, fará o mesmo para meios-sangues.
– Você convoca a deusa com um compressor?
Grover apontou o bico da mangueira para o ar e água saiu chiando em uma espessa névoa branca.
– A não ser que conheça um meio mais fácil de fazer um arco-íris.
De fato, a luminosidade do fim de tarde se filtrou através da névoa e se decompôs em cores.
Annabeth estendeu a palma da mão para mim.
– Dracma, por favor.
Eu o entreguei.
Ela ergueu a moeda acima da cabeça.
– Ó deusa, aceite nossa oferenda.
Jogou o dracma no arco-íris. Ele desapareceu em um tremeluzir dourado.
– Colina Meio-Sangue – solicitou Annabeth.
Por um momento, nada aconteceu. E então eu estava olhando através da névoa para campos de morangos e o Estreito de Long Island a distância. Era como se estivéssemos na varanda da Casa Grande. Em pé, de costas para nós junto à cerca, estava um cara de cabelos da cor da areia, de short e camiseta regata laranja. Segurava uma espada de bronze e parecia olhar atentamente para algo na campina.
– Luke! – chamei.
Ele se virou, os olhos arregalados. Poderia jurar que ele estava na minha frente, a um metro de distância, atrás de uma cortina de névoa,só que eu via apenas a parte dele que aparecia no arco-íris.
– Percy! – O seu rosto marcado pela cicatriz se abriu em um sorriso. – E Annabeth também? Graças aos deuses! Vocês estão bem?
– Estamos... ahn... ótimos – gaguejou Annabeth. Ela tentava desesperadamente alisar a camiseta suja e tirar os cabelos soltos da frente do rosto. – Nós pensamos... Quíron... quer dizer...
– Ele está lá embaixo nos chalés. – O sorriso de Luke se apagou. Estamos tendo alguns problemas com os campistas. Escute, está tudo legal com vocês? Grover está bem?
– Estou bem aqui – gritou Grover. Ele virou o esguicho para um lado e entrou no campo de visão de Luke. – Que tipo de problemas?
Bem naquele momento um grande Lincoln Continental entrou no lava-jato com o rádio tocando hip-hop no último volume.
Quando o carro entrou no boxe ao lado, os alto-falantes vibravam tanto que sacudiram o calçamento.
– Quíron teve de... que barulho é esse? – gritou Luke.
– Deixa que eu cuido disso! – gritou Annabeth parecendo muito aliviada por ter uma desculpa para sair de vista. – Grover, venha!
– O quê? – disse Grover. – Mas...
– Dê a mangueira a Percy e venha! – ordenou ela.
Grover resmungou qualquer coisa sobre as meninas serem mais difíceis de entender do que o Oráculo de Delfos, depois me entregou a mangueira e seguiu Annabeth.
Eu reajustei o esguicho para manter o arco-íris e ainda ver Luke.
– Quíron teve de separar uma briga – gritou Luke, mais alto que música. – A situação anda um bocado tensa por aqui. A questão-impasse entre Zeus e Poseidon vazou. Ainda não sabemos direito como... provavelmente, foi o mesmo sujeito nojento que convocou o cão infernal. Agora os campistas estão começando a tomar partido. As coisas estão ficando como na Guerra de Tróia, tudo de novo. Afrodite, Ares e Apolo estão de certo modo apoiando Poseidon. Atena está apoiando Zeus.
Estremeci só de pensar que o chalé de Clarisse pudesse estar do lado de meu pai para alguma coisa. No boxe ao lado, ouvi Annabeth e algum cara discutindo, e então o volume da música abaixou drasticamente.
– Então, qual é a sua situação? – Perguntou Luke para mim. – Quíron vai lamentar muito não ter podido falar com você.
Contei-lhe praticamente tudo, inclusive meus sonhos. Era tão boa a sensação de vê-lo, de que eu estava de volta ao acampamento, mesmo que fosse por alguns minutos, que não percebi por quanto tempo havia falado até que o alarme do compressor disparou. Vi que só tinha mais um minuto antes que a água desligasse.
– Queria poder estar aí – disse Luke. – Não podemos ajudar muito daqui, infelizmente, mas escute... com certeza foi Hades quem pegou o raio-mestre. Ele estava lá no Olimpo solstício de inverno. Eu estava supervisionando uma excursão e nós o vimos.
– Mas Quíron falou que os deuses não podem tomar diretamente os itens mágicos um do outro.
– É verdade – disse Luke, parecendo perturbado. – Ainda assim... Hades tem o elmo das trevas. Como alguém mais poderia se esgueirar para dentro da sala do trono e roubar o raio-mestre? É preciso estar invisível.
Ficamos os dois em silêncio até que Luke pareceu se dar conta do que dissera.
– Ei – protestou ele. – Não quis dizer Annabeth. Ela e eu nos conhecemos há uma eternidade. Ela jamais iria... quer dizer, ela é como uma irmã para mim.
Pensei comigo mesmo se Annabeth iria gostar daquela descrição. No boxe ao lado, a música parou. Um homem gritou aterrorizado, portas de carro bateram e o Lincoln saiu a toda do lava-jato.
– É melhor você ir ver o que foi aquilo – disse Luke. – Escute, está usando os tênis voadores? Eu me sentiria melhor se soubesse que lhe serviram de alguma coisa.
– Ah... ahn, sim! –Tentei não soar como parecer um mentiroso culpado. – Sim, foram úteis.
– É mesmo? – Sorriu. – Serviram e tudo o mais?
A água cessou. A névoa começou a dispersar.
– Bem, cuide-se lá em Denver – gritou Luke, a voz ficando mais baixa. – E diga a Grover que dessa vez será melhor! Ninguém será transformado em pinheiro se ele apenas...
Mas a névoa se foi, e a imagem de Luke desapareceu. Eu estava sozinho em um boxe molhado e vazio de lava-jato.
Annabeth e Grover apareceram no canto, rindo, mas pararam quando viram minha cara.
O sorriso de Annabeth sumiu.
– O que aconteceu, Percy? O que Luke disse?
– Quase nada – menti, sentindo o estômago tão vazio quanto um chalé dos Três Grandes. – Venham, vamos procurar alguma coisa para jantar.


Poucos minutos depois, estávamos sentados num reservado de um pequeno e reluzente restaurante todo cromado. À nossa volta, famílias comiam hambúrgueres e bebiam cerveja e refrigerantes. Finalmente, a garçonete veio. Ela ergueu uma sobrancelha com um ar cético.
– Então?
Eu disse:
– Nós, ahn, queremos pedir o jantar.
– Têm dinheiro para pagar, crianças?
O lábio inferior de Grover tremeu. Tive medo de que ele começasse a balir, ou, pior, começasse a comer o linóleo. Annabeth parecia prestes a desmaiar de fome.
Eu estava tentando pensar em uma história comovente para a garçonete quando um forte ronco sacudiu o edifício inteiro; uma motocicleta do tamanho de um filhote de elefante havia encostado no meio-fio.
Todas as conversas cessaram. O farol da motocicleta brilhava em vermelho. Tinha labaredas pintadas sobre o tanque de gasolina e um coldre de cada lado, com espingardas de caça. O assento era de couro — mas um couro que parecia... bem, pele humana, caucasiana.
O cara da moto podia fazer lutadores profissionais saírem correndo chamando a mamãe. Vestia uma camiseta justa vermelha, que ressaltava os músculos, jeans pretos e um casaco comprido de couro preto, com um facão de caça preso à coxa. Usava óculos escuros vermelhos, presos na nuca, e tinha a cara mais cruel, mais brutal que eu já tinha visto – boa-pinta, eu acho, porém mau, com cabelo negro como petróleo aparado a máquina, o rosto marcado por cicatrizes de muitas, muitas brigas. O estranho era que parecia que eu já tinha visto aquele homem em algum lugar.
Quando ele entrou no restaurante, um vento quente e seco soprou no ambiente. Todos se levantaram, como se estivessem hipnotizados, mas o motociclista acenou a mão com desdém e eles sentaram de novo. Todos voltaram às suas conversas. A garçonete piscou, como se alguém tivesse apertado o botão de retroceder em seu cérebro. Ela perguntou novamente:
– Têm dinheiro para pagar, crianças?
O cara da moto disse:
– É por minha conta. – Escorregou para dentro do nosso reservado, pequeno demais para ele, e espremeu Annabeth contra janela.
Encarou a garçonete, que olhava para ele de olhos arregalados, e disse:
– Ainda está aí?
Ele apontou para ela, e ela ficou rígida. Virou-se como se alguém a tivesse girado e marchou de volta para a cozinha.
O homem da moto me olhou. Não pude ver seus olhos atrás dos óculos vermelhos, mas sentimentos ruins começaram a fervilhar no meu estômago. Raiva, ressentimento, amargor. Tive vontade de bater na parede. Tive vontade de comprar briga com alguém. Quem aquele cara pensava que era?
Ele me deu um sorriso maldoso.
– Então você é o garoto do Velho das Algas, ahn?
Eu devia ter ficado surpreso, ou assustado, mas em vez disso era como se estivesse olhando para o meu padrasto, Gabe. Quis arrancar a cabeça do cara:
– O que você tem com isso?
Os olhos de Annabeth me lançaram um alerta.
– Percy, este é...
– Tudo bem – disse ele. – Não me incomodo com um pouco de petulância. Desde que você lembre quem manda. Sabe quem eu sou, priminho?
Então me veio à cabeça por que o cara me parecia familiar. Ele tinha o mesmo olhar cruel de algumas crianças do Acampamento Meio-Sangue, os do chalé 5.
– Você é o pai de Clarisse – disse eu. – Ares, deus da guerra.
Ares arreganhou um sorriso e tirou os óculos. Onde deveriam estar os olhos havia apenas fogo, órbitas vazias brilhando com miniexplosões nucleares.
– Certo, mané. Ouvi que quebrou a lança de Clarisse.
– Ela estava pedindo isso.
– Provavelmente. Tranquilo. Não me meto nas brigas dos meus filhos, sabia? Estou aqui porque ouvi dizer que estava na cidade. Tenho uma pequena proposta para você.
A garçonete voltou trazendo bandejas com montes de comida – cheeseburguers, batatas fritas, anéis de cebola empanados e milk-shakes de chocolate.
Ares entregou-lhe alguns dracmas de ouro.
Ela olhou nervosa para as moedas.
– Mas estas não são...
Ares puxou seu enorme facão e começou a limpar as unhas.
– Algum problema, benzinho?
A garçonete engoliu em seco e se afastou com o ouro.
– Não pode fazer isso – disse a Ares. – Não pode ameaçar pessoas com uma faca.
Ares riu.
– Está brincando? Eu adoro este país. Melhor lugar, depois de Esparta. Você não anda armado, otário? Pois devia. O mundo lá fora é perigoso. O que me traz de volta à minha proposta. Preciso que me faça um favor.
– Que favor eu poderia fazer para um deus?
– Algo que um deus não tem tempo de fazer ele mesmo. Nada demais. Larguei meu escudo em um parque aquático abandonado aqui na cidade. Estava no meio de um... encontro com minha namorada. Fomos interrompidos. Deixei o escudo para trás. Quero que vá buscá-lo para mim.
– Por que não volta lá e pega você mesmo?
O fogo nas órbitas dele ficou um pouco mais incandescente.
– Por que não transformo você em uma marmota e o atropelo com minha Harley? Porque não estou com vontade. Um deus está dando a você a oportunidade de se pôr à prova, Percy Jackson. Você vai mostrar que é um covarde? – Ele se inclinou para a frente. – Ou, quem sabe, você só luta quando há um rio para mergulhar dentro, para que seu papai possa protegê-lo?
Queria dar um murro naquele cara, mas, de algum modo, sabia que ele esperava por isso. O poder de Ares estava causando a minha raiva. Ele adoraria se eu o atacasse. Eu não queria lhe dar esse gostinho.
– Não estamos interessados – falei. – Já temos uma missão.
Os olhos ardentes de Ares me fizeram ver coisas que eu não queria – sangue, fumaça e corpos no campo de batalha.
– Eu sei de tudo sobre sua missão, seu imprestável. Quando aquele item foi roubado, Zeus enviou seus melhores para procurá-lo: Apolo, Atena, Ártemis e, naturalmente, eu. Se eu não consegui farejar uma arma tão poderosa... – Ele lambeu o beiço, como se a própria ideia do raio-mestre o tivesse deixado com fome. – Bem... se eu não consegui encontrá-lo, você não tem nenhuma chance. Entretanto, estou tentando lhe dar o beneficio da dúvida. Seu pai e eu nos conhecemos há muito tempo. Afinal, fui eu quem lhe contou minhas suspeitas sobre o velho Bafo de Cadáver.
– Você disse a ele que Hades roubou o raio?
– Claro. Acirrar os ânimos para uma guerra. O truque mais antigo de todos. Eu o reconheci imediatamente. De certo modo, você tem de agradecer a mim por sua missãozinha.
– Obrigado – resmunguei.
– Ei, sou um cara generoso. Faça meu servicinho e eu o ajudarei em sua viagem. Vou arranjar uma carona para oeste para você e seus amigos.
– Estamos indo muito bem sozinhos.
– Sim, certo. Sem dinheiro. Sem rodas. Sem nenhuma pista do que vão enfrentar. Ajude-me, e talvez eu lhe conte algo sobre que precisa saber. Algo sobre a sua mãe.
– Minha mãe?
Ele sorriu.
– Isso despertou sua atenção. O parque aquático fica um quilômetro e meio a oeste, na Delancy. Não há como errar. Procurem o Túnel do Amor.
– O que interrompeu seu namoro? – perguntei. – Alguma coisa o assustou?
Ares arreganhou os dentes, mas eu já tinha visto aquela cara ameaçadora antes, em Clarisse. Havia nela algo de incerto, quase um nervosismo.
– Você tem sorte de ter me encontrado, imprestável, e não um dos olimpianos. Eles não são tão indulgentes com a grosseria quanto eu. Encontrarei você aqui novamente quando tiver terminado. Não me desaponte.
Depois disso eu devo ter desmaiado, ou entrado em um transe, pois quando voltei a abrir os olhos Ares havia desaparecido. Podia ter pensado que toda a conversa fora um sonho, mas a expressão de Annabeth e Grover me dizia outra coisa.
– Nada bom – disse Grover. – Ares o procurou, Percy. Isso não é nada bom.
Olhei pela janela. A motocicleta havia desaparecido.
Será que Ares realmente sabia algo sobre minha mãe, ou estava apenas jogando comigo? Agora que ele se fora, toda a minha raiva passara. Percebi que Ares devia adorar bagunçar as emoções das pessoas. Era esse o seu poder – exacerbar tanto as paixões que elas atrapalhavam nossa capacidade de pensar.
– Deve ser algum tipo de truque – falei. – Esqueçam Ares. Vamos embora e pronto.
– Não podemos – disse Annabeth. – Olhe, detesto Ares tanto quanto qualquer um, mas não é possível ignorar os deuses a não ser que se deseje um azar tremendo. Ele não estava brincando sobre transformar você em um roedor.
Baixei os olhos para meu cheeseburguer, que de repente não parecia mais tão apetitoso.
– Por que ele precisa de nós?
– Talvez seja um problema que requeira inteligência – disse Annabeth. – Ares tem força. É tudo o que tem. Mesmo às vezes tem de se curvar à sabedoria.
– Mas esse parque aquático... ele agiu quase como se estivesse apavorado. O que faria um deus da guerra fugir desse jeito?
Annabeth e Grover se entreolharam nervosamente.
Annabeth disse:
– Acho que teremos de descobrir.


Quando encontramos o parque aquático, o sol estava se pondo atrás das montanhas. A julgar pela placa, ele outrora se chamara AQUALÂNDIA,mas agora algumas letras haviam sido arranca, então ela dizia AQU L D A.
O portão principal estava fechado com cadeado e tinha no alto arame farpado. Dentro, enormes escorregadores, tubos e canos se retorciam por toda parte, secos, desembocando em piscinas vazias. Velhos ingressos e folhetos subiam do asfalto com o vento. Com a noite chegando, o lugar parecia triste e arrepiante.
– Se Ares traz a namorada aqui para um encontro – falei, olhando para o arame farpado – não ia gostar de ver com aparência dela.
– Percy – advertiu Annabeth – tenha mais respeito.
– Por quê? Pensei que você detestasse Ares.
– Ainda assim, ele é um deus. E a namorada dele é muito temperamental.
– Não queremos ofendê-la – acrescentou Grover.
– Quem é? Equidna?
– Não, Afrodite – disse Grover, um pouco sonhador. – A deusa do amor.
– Pensei que ela fosse casada com alguém – disse eu. – Hefesto.
– E daí? – perguntou ele.
– Ah. – De repente, senti que era preciso mudar de assunto. – Então, como fazemos para entrar?
– Maia! — Os tênis de Grover criaram asas.
Ele voou por cima da cerca, deu um mortal involuntário no ar, depois pousou cambaleando no lado oposto. Sacudiu o pó dos seus jeans, como se tivesse planejado tudo aquilo.
– Vocês vêm?
Annabeth e eu tivemos de escalar à moda antiga, empurrando o arame farpado um para o outro enquanto nos arrastávamos por cima do topo.
As sombras se alongaram enquanto caminhávamos pelo parque, conferindo as atrações. Havia a Ilha dos Pequeninos, o Por cima da Cabeça e o Cara, Cadê o Meu Calção? Nenhum monstro chegou para nos pegar. Nada fazia o menor barulho.
Encontramos uma loja de lembrancinhas que fora deixada aberta. Ainda haviam mercadorias enfileiradas nas prateleiras: globos de neve, lápis, cartões-postais, e prateleiras de...
– Roupas – disse Annabeth. – Roupas limpas.
– É — completei. – Mas você não pode simplesmente...
– Observe.
Ela agarrou uma fileira inteira de artigos das prateleiras e desapareceu dentro do provador. Poucos minutos depois saiu vestindo short estampado de flores da Aqualândia, uma grande camiseta vermelha da Aqualândia e sapatilhas de surfe temáticas da Aqualândia. Pendurada no ombro, uma mochila da Aqualândia, obviamente recheada de outras coisinhas.
– Ora, que se dane. – Grover encolheu os ombros.
Logo nós três parecíamos anúncios ambulantes do parque temático fantasma.
Continuamos procurando pelo Túnel do Amor. Eu tinha a sensação de que o parque inteiro estava prendendo a respiração.
– Então Ares e Afrodite – falei, só para afastar os pensamentos da escuridão que aumentava – estão tendo um caso?
– É uma fofoca velha, Percy – disse Annabeth – fofoca de três mil anos.
– E o marido de Afrodite?
– Bem, você sabe – disse ela. – Hefesto. O ferreiro ficou aleijado quando bebê, atirado de cima do Monte Olimpo por Zeus. Então não é exatamente lindo. Habilidoso com as mãos e tudo, mas Afrodite não curte inteligência e talento, entende?
– Ela gosta de motoqueiros.
– Ou isso.
– Hefesto sabe?
– Ah, com certeza – disse Annabeth. – Uma vez ele os pegou juntos. Quer dizer, pegou mesmo, em uma rede de ouro, e chamou todos os deuses para ver e rir da cara deles. Hefesto está sempre tentando constrangê-los. É por isso que eles se encontram em lugares escondidos, como...
Ela se interrompeu, olhando em frente.
– Como aquilo.
Diante de nós havia uma piscina vazia que teria sido sensacional para andar de skate. Tinha pelo menos cinquenta metros de largura e forma de bacia.
Em volta da beira, uma dúzia de estátuas de Cupido montavam guarda de asas abertas e arcos prontos para disparar. Do outro lado abria-se um túnel, provavelmente para onde a água escoava quando a piscina estava cheia. A placa acima dele dizia: EMOCIONANTE PASSEIO DE AMOR: ESTE NÃO É O TÚNEL DO AMOR DOS SEUS PAIS!
Grover se arrastou até a borda.
– Gente, olhe.
Abandonado no fundo da piscina havia um barco de dois lugares rosa e branco, com coraçõezinhos pintados por toda parte. No assento da esquerda, brilhando na luz pálida, estava o escudo de Ares, um círculo polido de bronze.
– Fácil demais – disse eu. – Então é só descer até lá e pegá-lo?
Annabeth correu os dedos pela base da estátua de Cupido mais próxima.
– Há uma letra grega entalhada aqui – disse ela. – Eta. Imagino...
– Grover – falei – sente cheiro de algum monstro?
Ele farejou o vento.
– Nada.
– Nada do tipo no-Arco-você-não-sentiu-o-cheiro-de-Equidna ou realmente nada?
Grover pareceu ofendido.
– Disse a você, aquilo foi num subterrâneo.
– Certo, desculpe. – Eu respirei fundo. – Vou descer até lá.
– Vou com você. – Grover não pareceu muito entusiasmado, mas tive a impressão de que ele estava tentando compensar pelo que acontecera em St. Louis.
– Não – disse a ele. – Quero que fique no alto com os tênis voadores. Você é nosso ás da aviação, está lembrado? Vou contar com você para dar apoio, caso alguma coisa dê errado.
Grover estufou um pouco o peito.
– Claro. Mas o que poderia dar errado?
– Não sei. Só uma sensação. Annabeth, venha comigo...
– Está brincando? – Ela olhou para mim como se eu tivesse acabado de cair da Lua.
Suas bochechas estavam num tom vermelho vivo.
– Qual o problema agora? – perguntei.
– Eu... ir com você para um... um "Emocionante Passeio de Amor"? Que coisa mais embaraçosa! E se alguém me vir?
– Quem é que vai ver? – Mas agora a minha cara também estava queimando. Só mesmo uma menina para complicar as coisas. – Ótimo – disse a ela. – Vou fazer isso sozinho, quando comecei a descer pela lateral da piscina, ela me seguiu resmungando sobre como os meninos sempre complicam as coisas.
Chegamos ao barco. O escudo estava apoiado em um banco e ao lado havia um lenço feminino de seda. Tentei imaginar Afrodite ali, um casal de deuses se encontrando em um brinquedo de parque de diversões sucateado. Por quê? Então notei algo não tinha visto de cima: espelhos por toda a volta da borda da piscina, voltados para aquele ponto.
Podíamos nos ver, não importa em que direção olhássemos. Tinha de ser isso. Enquanto Ares e Afrodite estavam se agarrando, podiam ver suas pessoas favoritas: eles mesmos. Peguei o lenço. Tinha um brilho rosado, e o perfume indescritível — rosas, ou louro. Alguma coisa boa. Sorri, um sonhador, e estava quase passando o lenço no rosto quando Annabeth o arrancou da minha mão e enfiou em seu bolso.
– Ah, não, não faça isso. Fique longe dessa magia de amor.
– O quê?
– Apenas pegue o escudo, Cabeça de Alga, e vamos dar o fora daqui.
No momento em que toquei o escudo, vi que estávamos encrencados. Minha mão arrebentou algo que o conectava ao para-brisa. Uma teia de aranha, pensei, mas então olhei para um fio invisível na minha palma e vi que era algum tipo de filamento metálico, tão fino que era quase invisível. Uma armadilha.
– Espere – disse Annabeth.
– Tarde demais.
– Há uma outra letra grega na lateral do barco, um outro eta. Trata-se de uma armadilha.
Um ruído irrompeu a nossa volta, um milhão de engrenagens rangendo, como se a piscina inteira estivesse se transformando em uma máquina gigante.
Grover gritou:
– Gente!
Lá em cima na borda, as estátuas de Cupido armavam os arcos, antes que eu pudesse sugerir que nos abaixássemos, dispararam, mas não contra nós. Dispararam uma contra a outra, atravessando a piscina. Cabos de seda foram levados pelas flechas, fazendo um arco por cima da piscina e fincando-se no chão para formar um imenso asterisco dourado. Então fios metálicos menores começaram a se tecer magicamente por entre os principais, formando uma rede.
– Temos de dar o fora – disse eu.
– Ah, é mesmo? – disse Annabeth.
Agarrei o escudo e corremos, mas subir pela inclinação da piscina não era tão fácil quanto descer.
– Venham! – gritou Grover.
Ele estava tentando manter uma seção da rede aberta para nós, mas onde quer que a tocasse, os fios dourados começavam a envolver suas mãos.
A cabeça dos Cupidos se abriu de repente. De lá, saíram câmeras de vídeo. Luzes se ergueram por toda a volta da piscina, cegando-nos com a claridade, e um alto-falante soou:
– Ao vivo para o Olimpo em um minuto... Cinquenta e nove segundos, cinquenta e oito...
– Hefesto! – gritou Annabeth. – Como eu sou estúpida! Eta é “H”. Ele fez essa armadilha para pegar a mulher dele com Ares. Agora vamos ser transmitidos ao vivo para o Olimpo e parecer completos idiotas!
Estávamos quase conseguindo chegar à borda quando a fileira de espelhos se abriu como escotilhas e milhares de... coisinhas metálicas jorraram para fora.
Annabeth gritou.
Era um exército de bichos rastejantes de corda: corpo de engrenagens de bronze, pernas compridas e finas, bocas em pequenas pinças, todos correndo em nossa direção em uma onda de estalando e zumbindo.
– Aranhas! – disse Annabeth. – Ar... ar... aaaaaaaah!
Eu nunca a tinha visto daquele jeito. Ela caiu para trás, aterrorizada e quase se rendeu às aranhas-robôs antes que eu a puxasse para cima e a arrastasse de volta em direção ao barco.
Aquelas coisas vinham de todos os lados, milhões delas, inundando o centro da piscina, cercando-nos completamente. Disse a mim mesmo que não estavam programadas para matar, apenas para nos encurralar, nos morder e nos fazer parecer idiotas. Mas, por outro lado, era uma armadilha para deuses. E não éramos deuses.
Annabeth e eu subimos para dentro do barco. Comecei a chutar as aranhas para longe quando se acumulavam a bordo. Gritei para Annabeth me ajudar, mas ela estava paralisada demais para fazer qualquer coisa além de gritar.
– Trinta, vinte e nove – anunciou o alto-falante.
As aranhas começaram a cuspir fios de metal, tentando nos amarrar. De início os fios eram fáceis de romper, mas havia muitos deles, e as aranhas simplesmente continuavam a chegar. Tirei uma da perna de Annabeth com um chute, e suas pinças arrancaram um pedaço da minha nova sapatilha de surfista.
Grover pairava acima da piscina com seus tênis voadores, tentando soltar a rede, mas ela não cedia.
Pense, disse a mim mesmo, pense.
A entrada para o Túnel do Amor ficava embaixo da rede. Podíamos usá-la como saída, mas estava bloqueada por um milhão de aranhas-robôs.
– Quinze, catorze – anunciou o alto-falante. Água, pensei. De onde vem a água para o passeio?
Então vi: enormes canos atrás dos espelhos, de onde tinham vindo as aranhas. E acima da rede, perto de um dos Cupidos, uma cabine com janelas de vidro que devia ser a estação de controle.
– Grover! – gritei. – Entre naquela cabine! Encontre o botão de ligar!
– Mas...
– Faça isso! – Era uma esperança louca, mas era a nossa única chance. As aranhas já estavam por toda a proa do barco, Annabeth gritava sem parar. Eu tinha de nos tirar dali.
Grover estava agora na cabine de controle, malhando os botões.
– Cinco, quatro...
Ele olhou para mim desamparado, erguendo as mãos. Estava sinalizando que já tinha apertado todos os botões, mas nada acontecia.
Fechei os olhos e pensei em ondas, água correndo, no Mississipi. Senti um aperto familiar na garganta. Tentei imaginar que estava arrastando o oceano até Denver.
– Dois, um, zero!
A água explodiu para fora dos canos. Entrou rugindo na piscina, varrendo as aranhas para longe. Puxei Annabeth para ao lado do meu e prendi seu cinto de segurança bem quando a onda gigante atingiu o barco, de cima, expulsando as aranhas e nos encharcando completamente, mas sem virar o barco. Ele girou, erguido pela inundação, e circulou no redemoinho.
A água estava cheia de aranhas em curto-circuito, algumas colidindo contra a parede de concreto da piscina com tamanha força que explodiam.
As luzes brilharam sobre nós. As câmeras dos Cupidos estavam transmitindo ao vivo para o Olimpo.
Mas eu só podia me concentrar em controlar o barco. Desejei que ele seguisse a corrente, que ficasse afastado da parede. Talvez fosse minha imaginação, mas o barco pareceu reagir. Pelo menos não se quebrou em um milhão de pedaços. Circulamos uma última vez, e o nível da água já era quase suficiente para nos retalhar contra a rede de metal. Então o nariz do barco se virou para o túnel e disparamos como um foguete para dentro das trevas.
Annabeth e eu nos seguramos com força, os dois gritando quanto o barco se atirava em curvas e rodeava cantos e dava mergulhos de quarenta e cinco graus, passando por figuras de Romeu e Julieta e montes de outras bugigangas de Dia dos Namorados. Então estávamos fora do túnel, o ar da noite assobiando em nossos cabelos enquanto o barco seguia em alta velocidade para a saída.
Se o brinquedo estivesse em perfeito funcionamento, teríamos navegado por uma rampa entre os Portões Dourados do Amor e caído em segurança na piscina de saída. Mas havia um problema. Os Portões do Amor estavam fechados com correntes. Dois barcos que haviam sido arrastados para fora do túnel antes de nós estavam empilhados contra a barricada – um submerso e o outro partido ao meio.
– Solte seu cinto de segurança – gritei para Annabeth.
– Está maluco?
– A não ser que queira morrer esmagada. – Prendi o escudo de Ares no braço. – Vamos ter de pular.
Minha ideia era simples e insana. Quando o barco colidisse, íamos usar a força do impacto como um trampolim para pular por cima do portão. Ouvi falar de pessoas que sobreviveram a desastres de automóvel desse jeito, lançadas a dez ou vinte metros de distância do acidente. Com sorte, cairíamos na piscina.
Annabeth pareceu entender. Ela apertou minha mão quando os portões se aproximaram.
– Quando eu der o sinal – falei.
– Não! Quando eu der o sinal – corrigiu ela.
– O quê?
– Física básica! – gritou ela. – A força multiplicada pelo ângulo da trajetória...
– Está bem! – gritei. – Quando você der o sinal!
Ela hesitou... hesitou... e então gritou:
– Agora!
Crack!
Annabeth estava certa. Se tivéssemos pulado quando eu achava devíamos, teríamos nos arrebentado contra os portões. Ela conseguiu o máximo de impulso.
Por azar, foi um pouco maior do que precisávamos. Nosso barco foi atirado na pilha e fomos lançados para o ar, por cima do portão, por cima da piscina, e na direção do asfalto duro.
Alguma coisa me segurou por trás.
Annabeth gritou:
– Aaai!
Grover!
Em pleno ar, ele tinha me agarrado pela camisa, e agarrado Annabeth pelo braço, e tentava impedir que nos arrebentássemos no chão, mas Annabeth e eu ainda estávamos com toda a energia do impulso.
– Vocês são pesados demais! – disse Grover. – Estamos caindo!
Descemos em espiral, com Grover fazendo o que podia para reduzir a velocidade da queda.
Batemos contra um painel de fotografia. A cabeça de Grover entrou bem no buraco onde os turistas enfiavam a cara, fingindo ser Nu-Nu, a Baleia Camarada. Annabeth e eu desmoronam no chão, machucados, porém vivos. O escudo de Ares ainda preso ao meu braço.
Depois que recuperamos o fôlego, Annabeth e eu tiramos Grover do painel e o agradecemos por salvar nossa vida. Olhei para o Emocionante Passeio de Amor atrás de nós. A água estava baixando. Nosso barco em pedaços, esmagado contra os portões. A cem metros, na piscina de entrada do túnel, os Cupidos ainda filmavam. As estátuas tinham se virado de modo que as câmeras estavam apontadas para nós, os holofotes em nossos rostos.
– Acabou o show! – gritei. – Obrigado! Boa noite!
Os Cupidos voltaram às posições originais. As luzes se apagaram. O parque ficou novamente em silêncio e no escuro, a não ser pelo brilho fraco da água na piscina da saída do Emocionante Passeio de Amor. Imaginei se o Olimpo estaria em um intervalo comercial, e se nossos índices de audiência haviam sido bons.
Eu detestava ser provocado. Detestava ser enganado. E tinha vasta experiência de lidar com valentões que gostavam de fazer isso comigo. Levantei o escudo em meu braço e me virei para os meus amigos.
– Precisamos ter uma conversinha com Ares.

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