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O Ladrão de Raios - CAP. 17

.. sábado, 16 de março de 2013

Capítulo 17 - Vamos comprar camas d’água

A ideia foi de Annabeth. Ela nos meteu no banco de trás de um táxi de Las Vegas como se realmente tivéssemos dinheiro, e disse ao motorista:

– Los Angeles, por favor.
O taxista mascou seu charuto e nos mediu com os olhos.
– São quatrocentos e oitenta e dois quilômetros. Para isso, vocês têm de pagar adiantado.
– Aceita cartão de débito de cassinos? — perguntou Annabeth.
Ele deu de ombros.
– Alguns. Funcionam como os cartões de crédito. Preciso passar o cartão primeiro.
Annabeth estendeu o cartão GranaLótus verde para ele.
O motorista olhou com ar desconfiado.
– Passe o cartão – convidou Annabeth.
Ele fez isso.
O taxímetro começou a crepitar. Luzes se acenderam. Por fim, um símbolo do infinito apareceu ao lado do cifrão.
O charuto caiu da boca do motorista. Ele olhou para nós de olhos arregalados.
– Em que lugar de Los Angeles... ahn... Sua Alteza?
– O píer Santa Monica. – Annabeth endireitou um pouco o corpo. Dava para perceber que ela gostara daquilo de "Sua Alteza”. – Leve-nos depressa, e pode ficar com o troco.
Talvez ela não devesse ter dito aquilo.
O velocímetro do táxi não caiu nem por um instante abaixo de cento e sessenta ao longo de todo o percurso pelo deserto de Mojave.


Na estrada, tivemos tempo à vontade para conversar. Contei a Annabeth e Grover sobre meu último sonho, mas, quanto mais tentava me lembrar, mais imprecisos foram ficando os detalhes. O Cassino Lótus parecia ter causado um curto-circuito na minha memória. Eu não conseguia me lembrar de como era o som da voz do servo, embora tivesse certeza de que era de alguém que eu conhecia. O servo chamara o monstro no abismo de algum outro nome além de "meu senhor"... Algum nome ou título especial...
– O Silencioso? – sugeriu Annabeth. – O Rico? Ambos são apelidos de Hades.
– Talvez... – falei – embora nenhum dos dois parecesse muito certo.
– A sala do trono parece ser a de Hades – disse Grover. – É assim que costumam descrevê-la.
Eu sacudi a cabeça.
– Alguma coisa está errada. A sala do trono não era a parte principal do meu sonho. E aquela voz no abismo... Eu não sei. Simplesmente não parecia a voz de um deus. Os olhos de Annabeth se arregalaram.
– O que foi? – perguntei.
– Ah... nada. Eu estava só... Não, tem de ser Hades. Talvez ele tenha mandado esse ladrão, essa pessoa invisível, para pegar o raio-mestre, e algo tenha dado errado...
– Tipo o quê?
– Eu... eu não sei – disse ela. – Mas se ele roubou o símbolo do poder de Zeus do Olimpo, e os deuses o estavam caçando, quer dizer, uma porção de coisas poderia dar errado, ou ele o perdeu de algum modo. De qualquer jeito, não conseguiu levá-lo até Hades. Foi isso o que a voz disse no seu sonho, certo? O cara fracassou. Isso explicaria o que as Fúrias estavam procurando quando vieram atrás de nós no ônibus. Talvez achem que recuperamos o raio.
Não sabia muito bem o que estava errado com ela. Parecia pálida.
– Mas se eu já tivesse recuperado o raio – falei – por que estaria viajando para o Mundo Inferior?
– Para ameaçar Hades – sugeriu Grover. – Para suborná-lo ou chantageá-lo para devolver sua mãe.
Eu assobiei.
– Você tem pensamentos perversos para um bode.
– Ora, obrigado.
– Mas a coisa no abismo disse que estava esperando dois – falei. – Se o raio-mestre é um, qual é o outro?
Grover sacudiu a cabeça, claramente perplexo.
Annabeth olhava para mim como se soubesse qual seria a minha próxima pergunta e estivesse desejando silenciosamente que eu não a fizesse.
– Você tem ideia do que poderia estar naquele abismo não tem? – perguntei a ela. – Quer dizer, se não for Hades.
– Percy... não vamos falar sobre isso. Porque se não for Hades... Não. Tem de ser Hades.
A desolação passava por nós. Passamos por uma placa que dizia DIVISA DO ESTADO DA CALIFÓRNIA, VINTE QUILÔMETROS.
Tive a sensação de que estava deixando de notar alguma informação simples e crucial.Era como quando eu olhava para uma palavra que deveria conhecer, mas ela não fazia sentido porque uma ou duas letras estavam flutuando fora do lugar. Quanto mais eu pensava sobre minha missão, mais certeza tinha de que confrontar Hades não era a verdadeira resposta. Havia algo mais acontecendo, algo ainda mais perigoso.
O problema era: estávamos disparados na direção do Mundo Inferior a cento e sessenta quilômetros por hora, apostando que Hades tinha o raio-mestre. Se chegássemos lá e descobríssemos que estávamos errados, não teríamos tempo para corrigir o erro. O prazo do solstício passaria e a guerra começaria.
– A resposta está no Mundo Inferior – assegurou Annabeth. – Você viu os espíritos dos mortos, Percy. Só há um lugar onde isso é possível. Estamos fazendo a coisa certa.
Ela tentou levantar a nossa moral sugerindo estratégias engenhosas para entrar na Terra dos Mortos, mas meu coração não estava naquilo. O fato é que havia muitos fatores desconhecidos. Era como estudar loucamente para uma prova sem saber qual é o assunto. E, acredite-me, isso eu já fizera muitas vezes.
O táxi ia a toda para oeste. Cada rajada de vento no Vale da Morte parecia um espírito dos mortos. Cada vez que os freios chiavam atrás de um caminhão de dezoito rodas, aquilo me lembrava a voz reptiliana de Equidna.


Ao pôr do sol, o táxi nos deixou na praia de Santa Monica. Era exatamente como as praias de Los Angeles que se veem nos filmes, só que o cheiro era pior. Havia carrosséis de parque de diversão ao longo do píer, palmeiras nas calçadas, sem-teto dormindo nas dunas e surfistas esperando a onda perfeita,
Grover, Annabeth e eu caminhamos até a beira-mar.
– E agora? – perguntou Annabeth.
O Pacífico estava ficando dourado ao sol poente. Pensei em quanto tempo se passara desde que estivera na praia de Montauk, do outro lado do país, olhando para um mar diferente.
Como podia haver um deus capaz de controlar aquilo tudo? O que meu professor de ciências dizia – dois terços da superfície da Terra são cobertos de água? Como eu podia ser filho de alguém tão poderoso?
Entrei na arrebentação.
–Percy? – disse Annabeth. – O que está fazendo?
Continuei andando, até a água chegar à minha cintura, depois ao peito. Ela gritou para mim:
– Tem ideia de quanto essa água está poluída? Há todos os tipos de coisas tóxicas...
Foi quando minha cabeça submergiu.
De início, prendi a respiração. É difícil inalar água de propósito. Por fim não pude mais aguentar. Inspirei. De fato, eu conseguia respirar normalmente.
Desci andando até os bancos de areia. Não deveria conseguir enxergar naquelas águas escuras, mas de algum modo podia dizer onde tudo estava. Conseguia sentir a textura ondulada do fundo. Podia distinguir colônias de estrelas-do-mar pontilhando os bancos de areia. Podia até ver as correntes, quentes e frias, rodopiando juntas.
Senti algo roçando a minha perna. Olhei para baixo e pulei para fora da água como um míssil. Deslizando ao meu lado, havia um tubarão-sombreiro de um metro e meio de comprimento.
Mas ele não estava atacando, apenas esfregava o nariz em mim. Estava nos meus calcanhares como um cachorro. Vacilante, toquei sua barbatana dorsal. Ele resistiu um pouco, como se estivesse me convidando a segurar mais forte. Agarrei a barbatana com as duas mãos. Ele partiu, me puxando. O tubarão me arrastou para o fundo, para a escuridão, e me largou à beira do oceano propriamente dito, onde o banco de areia despencava em um imenso abismo. Era como estar na beira do Grand Canyon à meia-noite, sem conseguir ver muita coisa mas sabendo que o vazio estava bem ali.
A superfície tremeluzia a uns cinquenta metros. Eu sabia que devia ter sido esmagado pela pressão. Mas, por outro lado, o natural era que também não respirasse. Fiquei imaginando se haveria um limite até o qual eu poderia avançar, e se era possível descer direto até o fundo do Pacífico.
Então vi algo reluzindo na escuridão abaixo, ficando maior e mais brilhante à medida que subia na minha direção. Uma voz de mulher, como a da minha mãe, chamou:
– Percy Jackson.
Quando ela chegou mais perto, sua forma ficou mais clara. Tinha cabelos pretos soltos e usava um vestido de seda verde. A luz tremeluzia a seu redor, e os olhos eram tão perturbadoramente bonitos que mal notei o cavalo-marinho do tamanho de um corcel em que ela estava montando.
Ela desmontou. O cavalo-marinho e o tubarão-sombreiro se afastaram rapidamente e começaram uma brincadeira que parecia esconde-esconde. A dama submarina sorriu para mim.
– Você chegou longe, Percy Jackson. Muito bem!
Eu não sabia muito bem o que fazer, então me curvei.
– Você é a mulher que falou comigo no rio Mississipi.
– Sim, criança. Eu sou uma nereida, um espírito do mar. Não foi fácil aparecer tão longe, rio acima, mas as náiades, minhas primas da água doce, ajudaram a sustentar minha força vital. Elas honram o Senhor Poseidon, embora não sirvam em sua corte.
– E... você serve na corte de Poseidon?
Ela assentiu.
– Muitos anos se passaram desde que nasceu uma criança do Deus do Mar. Nós o observamos com grande interesse.
De repente me lembrei dos rostos nas ondas perto da praia de Montauk quando eu era pequeno, reflexos de mulheres sorridentes. Como com tantas coisas estranhas em minha vida, nunca havia pensado muito naquilo.
– Se meu pai se interessa tanto por mim – falei – por que não está aqui? Por que não fala comigo?
Uma corrente fria subiu das profundezas.
– Não julgue o Senhor do Mar tão duramente – disse-me a nereida. – Ele está prestes a lutar em uma guerra indesejada. Tem muito com que ocupar seu tempo. Além disso, está proibido de ajudá-lo diretamente. Os deuses não podem demonstrar tal favoritismo.
– Mesmo com seus próprios filhos?
– Especialmente com estes. Os deuses só podem agir por influência indireta. E por isso que lhe dou um aviso, e um presente.
Ela estendeu a mão aberta e três pérolas brancas brilharam.
– Sei de sua jornada aos domínios de Hades – disse. – Poucos mortais já fizeram isso e sobreviveram: Orfeu, que possuía grande talento musical; Hércules, que tinha grande força; Houdini, que podia escapar até mesmo das profundezas do Tártaro. Você tem esses talentos?
– Ahn... não, senhora.
– Ah, mas você tem algo mais, Percy. Possui dons que esta apenas começando a descobrir. Os oráculos vaticinaram um grande e extraordinário futuro para você, desde que sobreviva até a idade adulta. Poseidon não aceitará que morra antes do tempo, portanto pegue estas pérolas, e quando estiver em apuro, esmague elas a seus pés.
– O que vai acontecer?
– Depende do apuro. Mas lembre: o que pertence ao mar sempre retornará ao mar.
– E o aviso?
Os olhos dela brilharam com uma luz verde.
– Faça o que seu coração manda, ou perderá tudo. Hades se alimenta de dúvidas e desesperança. Ele o enganará se puder, o fará desconfiar de seu próprio julgamento. Depois que estiver nos domínios dele, Hades jamais permitirá voluntariamente que você parta. Mantenha a fé. Boa sorte, Percy Jackson.
Ela chamou seu cavalo-marinho e partiu para o vazio.
– Espere! – gritei. – No rio, você disse para não confiar em presentes. Que presentes?
– Adeus, jovem herói – gritou ela de volta, a voz desaparecendo nas profundezas. – Você deve ouvir seu coração. – Ela se transformou em um ponto verde luminoso e depois desapareceu. Eu quis segui-la para as profundezas escuras. Quis ver a corte de Poseidon. Mas ergui os olhos para o crepúsculo que se transformava em noite na superfície. Meus amigos estavam esperando. Tínhamos tão pouco tempo...
Tomei impulso para cima em direção à arrebentação.
Quando cheguei à praia, minhas roupas secaram instantaneamente. Contei a Grover e a Annabeth o que acontecera, e mostrei as pérolas a eles.
Annabeth fez uma careta.
– Nenhum presente vem sem um preço.
– Elas foram de graça.
– Não. – Ela sacudiu a cabeça. – "Não existe almoço grátis." É um antigo ditado grego que se aplica perfeitamente hoje em dia. Haverá um preço. Aguarde.
Com esse pensamento feliz, demos as costas para o mar.


Tomamos o ônibus para West Hollywood com um pouco dos trocados que sobraram na mochila de Ares. Mostrei ao motorista o recibo com o endereço do Mundo Inferior que eu pegara no Empório de Anões de Jardim da Tia Eme, mas ele nunca ouvira falar nos Estúdios de Gravação M.A.C. – Morto ao Chegar.
– Você me lembra alguém que vi na tevê – falou – ator infantil, ou coisa assim?
– Ahn... eu sou dublê... de uma porção de atores infantis.
– Ah! Está explicado.
Agradeci e desci rapidamente na parada seguinte.
Perambulamos por quilômetros à procura do M.A.C. Ninguém parecia saber onde era. Não constava da lista telefônica. Duas vezes nos esquivamos para becos, para evitar viaturas de polícia.
Fiquei paralisado na frente da vitrine de uma loja de eletrodomésticos porque uma televisão mostrava uma entrevista com alguém que pareceu muito familiar – meu padrasto, Gabe Cheiroso. Ele estava falando com Barbara Walters – parecendo uma grande celebridade. Ela o entrevistava em nosso apartamento, no meio de um jogo de pôquer, e havia uma jovem loira sentada ao lado dele, afagando-lhe a mão.
Uma lágrima falsa brilhou na bochecha dele enquanto ele dizia:
– Honestamente, Sra. Walters, se não fosse aqui pela Fofinha, minha conselheira nas horas tristes, eu estaria um caco. Meu enteado levou tudo o que me era caro... Minha esposa... meu Camaro... eu... desculpe. Sinto dificuldade em falar sobre isso.
– Ai está, América. – Barbara Walters voltou-se para a câmera. – Um homem destroçado. Um menino adolescente com sérios problemas. Deixem-me mostrar agora a última foto desse problemático jovem fugitivo, tirada há uma semana em Denver.
A tela cortou para uma foto granulada em que eu, Annabeth e Grover do lado de fora do restaurante Colorado estávamos falando com Ares.
– Quem são as outras crianças nesta foto? – perguntou Barbara Walters com dramaticidade. – Quem é o homem que está com elas? Percy Jackson é um delinquente, um terrorista ou uma vítima da lavagem cerebral de uma nova e assustadora seita? Quando voltarmos, vamos conversar com uma renomada psicóloga infantil. Fique conosco, América.
– Vamos – disse-me Grover. Ele me arrastou para longe antes que eu abrisse um buraco na vitrine da loja de eletrodomésticos com um murro.
Anoiteceu, e personagens de aparência esfomeada começaram a sair para as ruas para representar seus papéis. Não me entendam mal. Sou nova-iorquino. Não me assusto facilmente. Mas estar em Los Angeles era bem diferente de estar em Nova York. Onde eu morava tudo parecia perto. Embora fosse uma grande cidade, era possível se chegar a qualquer lugar sem se perder. O padrão das ruas e o metrô faziam sentido. Havia um critério de funcionamento das coisas. Desde que não fosse bobo, um garoto podia se sentir seguro lá.
Los Angeles não era assim. Era espalhada, caótica, ficava difícil se locomover. Fazia lembrar Ares. Para Los Angeles, não bastava ser grande; era preciso também provar-se grande sendo barulhenta, estranha e difícil de navegar. Eu não sabia como iríamos encontrar a entrada para o Mundo Inferior até o dia seguinte, o solstício de verão.
Passamos por gangues, vagabundos e camelôs, que nos olhavam como se tentassem avaliar se nos atacar seria um bom negócio.
Quando passamos apressados pela entrada de um beco, uma voz disse no escuro:
– Ei, você.
Como um idiota, parei. Antes que nos déssemos conta, estávamos cercados, Uma gangue de garotos estava ao nosso redor. Seis ao todo – garotos brancos com roupas caras e expressão perversa.
Como os garotos da Academia Yancy; moleques ricos brincando de ser malvados. Por instinto, destampei Contracorrente.
Quando a espada apareceu do nada, eles recuaram, mas seu líder ou era muito estúpido ou muito valente, porque continuou avançando em minha direção com um canivete de mola.
Cometi o erro de desferir um golpe.
O garoto deu um grito agudo. Mas ele devia ser cem por cento mortal, porque a lâmina passou inofensiva por seu peito. Ele olhou para baixo.
– Mas que...
Calculei que teria mais ou menos três segundos antes que o choque dele se transformasse em raiva.
– Corram! – gritei para Annabeth e Grover.
Empurramos dois deles para fora do caminho e disparamos pela rua, sem saber aonde estávamos indo. Dobramos uma esquina numa curva bem fechada.
– Ali! – gritou Annabeth.
Somente uma loja do quarteirão parecia aberta, as vitrines brilhando em néon. O letreiro acima da porta dizia algo como LACIÁPO ADS MASCA Á’GDUS OS SCRATO.
– Palácio das Camas d'Água do Crosta? – traduziu Grover.
Não parecia o tipo de lugar onde eu entraria a não ser em uma emergência, mas sem dúvida era essa a situação.
Irrompemos pelas portas, corremos para trás de uma cama d’água e nos abaixamos. Uma fração de segundo depois, a gangue de garotos passou correndo do lado de fora.
– Acho que os despistamos – ofegou Grover.
Uma na voz atrás de nós retumbou:
– Despistaram quem?
Nos três pulamos. Logo atrás, em pé, estava um cara que parecia um tiranossauro em trajes de passeio. Tinha pelo menos dois metros e tanto de altura, completamente careca. A pele era cinzenta e curtida como couro, olhos de pálpebras grossas e sorriso frio, reptiliano.
Aproximava-se lentamente, mas tive a sensação de que poderia se mover depressa se precisasse.
Seu traje parecia saído do Cassino Lótus. Era dos gloriosos anos 70. A camisa era de seda estampada, desabotoada até a metade do peito sem pelos. As lapelas do casaco de veludo eram largas como pistas de pouso. Eram tantas correntes de prata no pescoço que nem consegui contar.
– Eu sou o Crosta – disse com um sorriso amarelo de tanto tártaro.
Resisti ao impulso de dizer, Sim, está na cara.
– Desculpe a invasão – falei. – Estamos só, ahn, dando uma olhada.
– Você quer dizer, se escondendo daqueles garotos mal-encarados – resmungou ele. – Eles ficam vadiando por aqui todas as noites. Entra uma porção de gente na loja, graças a eles. Digam, querem ver uma cama d'água?
Eu já ia dizer Não, obrigado quando ele pôs uma pata enorme no meu ombro e me empurrou mais para dentro do salão da loja. Havia todos os tipos de camas d'água que você possa imaginar: diferentes tipos de madeira, lençóis de padronagem variadas; queen-size, king-size, gigantescas.
– Este é meu modelo de maior sucesso. – Crosta passou as mãos orgulhosamente sobre uma cama coberta com cetim preto, com lâmpadas de lava embutidas na cabeceira. O colchão vibrava, e a coisa ficava parecendo gelatina de petróleo.
– Massagem de um milhão mãos – disse Crosta. – Vão em frente, experimentem. Tirem uma soneca, mandem ver. Eu não importo. Tem pouco movimento hoje.
– Ahn – falei. – Não acho que...
– Massagem de um milhão de mãos! — exclamou Grover, e mergulhou na cama. – Ah, gente! Isso é legal.
– Hummm – disse Crosta, coçando o seu queixo de couro. – Quase, quase.
– Quase o quê? – perguntei.
Ele olhou para Annabeth.
– Faça-me um favor e experimente aquela lá, meu bem. Pode servir.
Annabeth disse:
– Mas o que...
Ele lhe deu algumas palmadinhas tranquilizadoras no ombro e a levou para o modelo Safári Deluxe, com leões de teca entalhados na armação e um acolchoado de leopardo.
Como Annabeth não quis deitar, Crosta a empurrou.
– Ei! – protestou ela.
Crosta estalou os dedos.
– Ergo!
Cordas pularam das laterais da cama e envolveram Annabeth como chicotes, prendendo-a ao colchão.
Grover tentou se levantar, mas cordas pularam também de sua cama de cetim preto, e o prenderam.
– N-não é l-l-legal! – gritou ele, a voz vibrando com a massagem de um milhão de mãos. – N-n-nada l-l-legal!
O gigante olhou para Annabeth, voltou-se para mim e arreganhou um sorriso.
– Quase. Droga.
Tentei me afastar, mas a mão dele se arremessou e me agarrou pela nuca.
– Opa, garoto. Não se preocupe. Vamos achar uma para você em um segundo.
– Solte meus amigos.
– Ah, certamente, eu vou. Mas vou ter de ajustá-los primeiro.
– O que quer dizer?
– Todas as camas têm exatamente um metro e oitenta, sabia? Seus amigos são baixinhos demais. Tenho de ajustá-los para servir nas camas.
Annabeth e Grover continuaram se debatendo.
– Não tolero medidas imperfeitas – resmungou Crosta. – Ergo!
Um novo conjunto de cordas pulou dos pés e da cabeceira da cama, enrolando-se nos tornozelos e axilas de Grover e Annabeth. As cordas começaram a se esticar, puxando meus amigos pelas duas extremidades.
– Não se preocupe – disse Crosta para mim. – É um servicinho de estiramento. Talvez uns oito centímetros a mais nas colunas deles. Podem até sobreviver. Agora, por que não achamos uma cama de que você goste, heim?
– Percy! – gritou Grover.
Minha cabeça estava a mil. Sabia que não conseguiria dominar sozinho aquele gigante vendedor de camas d'água. Ele quebraria meu pescoço antes mesmo que eu pegasse a espada.
– Seu nome de verdade não é Crosta, é? – perguntei.
– Na certidão é Procrusto – admitiu ele.
– O Esticador.
Lembrei-me da história: o gigante que tentara matar Teseu com excesso de hospitalidade a caminho de Atenas.
– Sim – disse o vendedor. – Mas quem é capaz de pronunciar Procrusto? É ruim para os negócios. Agora, "Crosta' um pode dizer.
– Tem razão. Soa muito bem. – Os olhos dele se iluminaram.
– Acha mesmo?
– Ah, sem dúvida – disse eu. – E o acabamento dessas camas? Fabuloso!
Ele abriu um enorme sorriso, mas os dedos não afrouxaram em meu pescoço.
– Digo isso aos meus fregueses. Sempre. Ninguém se preocupa em examinar o acabamento. Quantas lâmpadas de lava embutidas você já viu?
– Não muitas.
– Claro!
– Percy! – gritou Annabeth. – O que está fazendo?
– Não ligue para ela – disse eu a Procrusto. – Ela impossível.
O gigante riu.
– Todos os meus fregueses são. Nunca têm um metro e oitenta exato. Muito desatencioso. E depois se queixam do ajuste.
– O que você faz quando eles têm mais de um metro e oitenta?
– Ora, isso acontece sempre. É um ajuste simples.
Ele soltou meu pescoço, mas antes que eu pudesse reagir esticou o braço para trás de um balcão próximo e de lá tirou um enorme machado de bronze com lâmina dupla. Ele disse:
– É só centralizar o freguês o melhor possível e aparar o que estiver sobrando nas duas extremidades.
– Ah – falei, engolindo em seco. – Sensato.
– Estou tão satisfeito em cruzar com um freguês inteligente!
Agora as cordas estavam realmente esticando meus amigos. Annabeth estava ficando pálida. Grover fazia sons gorgolejantes, como um ganso estrangulado.
– Então, Crosta... – falei, tentando manter a voz despreocupada. Olhei de relance para a cama Lua-de-Mel Especial, em forma de coração. – Esta aqui tem mesmo estabilizadores dinâmicos para compensar o movimento ondulatório?
– É claro. Experimente.
– Sim, talvez eu experimente. Mas funcionaria também para um cara grande como você? Sem nenhuma ondulação?
– Garantido.
– Não acredito.
– Pode acreditar.
– Mostre.
Ele sentou com vontade na cama e deu uma palmadmha no colchão.
– Nenhuma ondulação. Viu?
Estalei os dedos.
– Ergo!
As cordas saltaram em volta de Crosta e o achataram no colchão.
– Ei! – gritou ele.
– Centralizar bem – falei.
As cordas se reajustaram ao meu comando. A cabeça inteira de Crosta ficou para fora da cabeceira. Os pés ficaram para fora na outra ponta.
– Não! – disse ele. – Espere! Era só uma demonstração.
Destampei Contracorrente.
– Alguns ajustezinhos...
Não tive nenhum escrúpulo quanto ao que estava prestes a fazer. Se Crosta não fosse humano, eu, de qualquer jeito, não poderia feri-lo. Se fosse um monstro, merecia ser transformado em pó por algum tempo.
– Você negocia duro – disse-me ele. – Dou-lhe trinta por cento de desconto nos modelos em exposição!
– Acho que vou começar com a parte de cima. – Ergui a espada.
– Sem entrada! Financiamento em seis meses sem juros!
Desci a espada. Crosta parou de fazer ofertas.
Cortei as cordas nas outras camas. Annabeth e Grover puseram-se em pé, gemendo e se encolhendo e me xingando muito.
– Vocês parecem mais altos – falei.
– Muito engraçado – disse Annabeth. – Da próxima vez seja mais rápido.
Olhei para o quadro de avisos atrás do balcão de Crosta. Havia uma propaganda do Serviço de Entregas Hermes e outra do Guia Completo dos Monstros na Área de Los Angeles – "As únicas Páginas Amarelas Monstruosas de que você vai precisar!".
Embaixo daquilo, um panfleto em laranja vivo dos Estúdios de Gravação M.A.C. oferecendo comissões por almas de heróis. "Estamos sempre a procura de novos talentos!" O endereço estava logo abaixo, com um mapa.
– Vamos – disse a meus amigos.
– Espere só um minuto – queixou-se Grover. – Fomos praticamente esticados até a morte!
– Então estão preparados para o Mundo Inferior – falei. – Fica apenas há uma quadra daqui.

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